Quem concebe bem, escreve bem. (Platão)
Hoje vamos mostrar como aplicar a visualização, uma técnica que garante personagens memoráveis em suas histórias. Talvez você até conheça as nossas duas dicas para construção de narrativas criativas e saiba que uma delas é a visualização, mas a novidade deste artigo é a apresentação detalhada de como essa técnica pode se aplicar aos personagens — e o mais importante: torná-los marcantes.
Um personagem marcante pode salvar até mesmo uma história com problemas na estrutura ou na trama. Do mesmo modo, se os personagens são fracos, a história será considerada ruim — mesmo se apresentar méritos em outros quesitos. Então, para que a segunda opção não seja uma realidade em seus textos, vamos aprofundar a consciência do processo de criação por meio da técnica de visualização.
Com isso, ainda vamos afastar o fantasma que assombra muitos escritores: a impressão de ter que se criar os personagens do nada, pois não é exatamente assim que acontece, ninguém cria algo do nada. Todo autor recorre, de forma mais ou menos consciente, a uma série de fontes que lhe fornecem a inspiração para criar seus personagens.
Sendo assim, para cumprir o nosso objetivo, preparamos quatro soluções que certamente vão ajudar você a visualizar mentalmente seus personagens literários!
1. Visualização de pessoas reais
Observar pessoas na rua e tentar elaborar uma biografia para elas é um exercício de criatividade muito comum a escritores. Uma prova disso é o célebre exemplo de Agatha Christie, que por diversas vezes afirmou ter criado seus personagens a partir de pessoas que ela encontrou casualmente no saguão de um hotel ou em um vagão de trem. Consta que Hercule Poirot, seu personagem mais famoso, teria sido inspirado em um refugiado estrangeiro que ela viu certa vez.
A partir dessa simples brincadeira, você pode acabar criando um personagem irresistível, que se encaixa como uma luva naquela história que você está pensando em escrever ou que sugere toda uma sequência narrativa que pode virar uma nova e instigante história. Apenas tome cuidado para que sua “observação criativa” seja bastante discreta e que ninguém perceba o que você está fazendo. Afinal, algum de seus “objetos de estudo” pode se sentir ofendido ao notar que está sendo observado por uma pessoa estranha na rua!
Uma variação desse método é utilizar atores famosos como modelos para seus personagens. O que sabemos sobre uma celebridade do cinema ou da TV é sempre um recorte, uma persona, uma faceta que é mostrada em público, mas não a personalidade integral daquela pessoa. Caso você recorra a esse recurso, uma sugestão válida é mesclar as características de duas ou três pessoas em um único personagem, de forma a lhe conferir mais complexidade e profundidade.
Atenção: jamais revele que aquele seu personagem X foi inspirado em tal ator ou atriz. Esse é um erro muito frequente em escritores iniciantes. Esse erro implicaria em “congelar” a imaginação do leitor, reduzindo as possibilidades de seu personagem ao limitado estereótipo que é a imagem pública de uma celebridade.
2. Pesquise os tipos psicológicos
Esse método exige mais trabalho e, por isso mesmo, pode oferecer resultados muito compensadores. Consiste basicamente em moldar o seu personagem a partir do perfil psicológico traçado por alguma teoria da personalidade.
Os tipos psicológicos descritos na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, por exemplo, parecem ter sido talhados para atender às necessidades criativas dos escritores. Trata-se de um sistema relativamente simples, no qual duas disposições ou atitudes psíquicas (Extroversão e Introversão) associam-se a quatro funções psíquicas (Sensação, Intuição, Pensamento e Sentimento), determinando oito tipos diferentes de personalidade, nos quais todos nós nos enquadraríamos.
Posteriormente, Isabel Myers e Katharine Briggs acrescentaram mais duas funções (Percepção e Julgamento) ao modelo de Jung, expandindo para dezesseis tipos psicológicos. Ainda que estruturado de forma simples, esse sistema permite um grande aprofundamento no delineamento da personalidade e, consequentemente, a visualização de personagens bastante complexos.
O método do perfil psicológico é bastante utilizado nas histórias policiais, especialmente na elaboração de personagens psicopatas ou psicóticos. Às vezes, um tipo específico de psicopatologia pode inspirar personagens bem interessantes. Por exemplo, J. K. Rowling, renomada criadora da série Harry Potter, baseou a trama de um romance policial (Vocação para o Mal, escrito sob o pseudônimo de Robert Galbraith) em uma exótica patologia psíquica: a Xenomelia ou TIIC (Transtorno de Identidade de Integridade Corporal), que é o desejo de possuir alguma deficiência física ou o sentimento de que algum membro do corpo não pertence a si mesmo, gerando o forte impulso de ter esse membro amputado.
Ao utilizar esse método, contudo, o ideal é que você não deixe muito evidente quais perfis psicológicos utilizou para elaborar seus personagens. Da mesma forma como na vida real ninguém anda com uma etiqueta colada à testa, indicando seu tipo de personalidade, do mesmo modo deve ocorrer na ficção, ou seja, os personagens mais interessantes são os que não se deixam desvendar com muita facilidade. Vale lembrar o clássico O Estrangeiro, de Albert Camus, cujo protagonista Meursault até hoje desafia as interpretações.
3. Inspire-se nos sonhos
Esse é, a princípio, o método menos trabalhoso, pois o personagem já vem praticamente pronto do mundo dos sonhos! Sonhar não custa nada e pode render ótimos personagens: já reparou como algumas pessoas que aparecem em nossos sonhos são incrivelmente vívidas e reais, mesmo sem parecer com ninguém que conheçamos? E por que não aproveitar esses sonhos tão convincentes na composição de personagens?
Alguns podem objetar que esse método seja excessivamente passivo, e que tenhamos que nos contentar com o que os sonhos trazem. Entretanto, é possível treinar nossa mente para produzir sonhos de acordo com nossas necessidades. Experimente: imediatamente antes de dormir, “converse” com a sua mente e peça para sonhar com personagens ou tramas interessantes. Se desejar, acrescente detalhes específicos: “desejo sonhar com a mais bela princesa dos contos de fada” ou, se você tiver muita coragem, “desejo sonhar com o vilão mais apavorante de todos os tempos”. Se não der certo na primeira tentativa, insista. Cedo ou tarde, você receberá o prêmio de um sonho significativo.
A razão disso é que o pensamento vai ficando cada vez mais forte e, em um dado momento, acabará surgindo personificado em seu sonho. O mestre iogue Paramahansa Yogananda diz que o sonho surge porque, quando em repouso, o cérebro é capaz de transformar os pensamentos em imagens.
Detalhe importante: lembre-se de deixar um bloco de notas e uma caneta à mão, para que você possa anotar seu sonho antes que ele evapore no esquecimento!
Muitos artistas e cientistas receberam ideias geniais por inspiração onírica. Na literatura, destaca-se Julio Cortázar, com muitas histórias e personagens fascinantes que saíram de seus sonhos.
4. Crie a partir das necessidades da trama
De todos os métodos, esse é o mais estritamente literário e também, podemos afirmar, o modo mais elevado de visualizar os personagens. Consiste em ir elaborando minuciosamente as características do personagem à medida que a estrutura da narrativa vai sendo concebida.
Isso pode implicar em ter de reformular e reescrever muitas vezes, até alcançar um perfeito equilíbrio entre personagens e trama. E o resultado desse esforço é, muitas vezes, uma autêntica obra-prima da literatura, que vence o tempo e perdura no coração dos homens. Isso acontece porque, ao final da leitura, o leitor tem a impressão de que cada acontecimento da trama decorre inevitavelmente da personalidade dos personagens envolvidos. O efeito gerado, muito poderoso, é o de que a história está viva e pulsante, como uma porção do mundo real capturada nas páginas.
Para compreender melhor esse método criativo, vamos considerar duas das maiores tragédias de todos os tempos: Édipo Rei, de Sófocles, e Hamlet, de Shakespeare. Em ambos os casos, a tragédia decorre diretamente da personalidade do protagonista. Se Édipo não fosse tão audacioso e impulsivo, não teria assassinado o próprio pai e casado com a própria mãe, sem saber. Se Hamlet não fosse tão consciencioso, não teria hesitado tanto em punir o assassinato de seu pai e, assim, sua amada Ofélia não teria morrido. Por não saber, Édipo age. Hamlet, por saber, não age. Se um estivesse no lugar do outro, não haveria tragédia. Como estava cada um em seu lugar, a tragédia foi inevitável.
Bônus!
Agora que você já conheceu quatro métodos para visualizar mentalmente os personagens literários, fica claro que só teremos a ganhar pela adoção de um quinto método: a combinação deles!
Nada nos impede, por exemplo, de tomar o tipo físico de alguém que vimos na rua e agregar características tiradas de uma teoria da personalidade ou de algum sonho que tivemos para criar um personagem inesquecível, fazendo sempre as adaptações necessárias para que a trama fique mais coesa.
Desejamos muita inspiração para seus textos. Precisa de revisão de texto? Conte sempre com a gente!
Gratidão pelo artigo!
Olá, caro Fabio Shiva! Sentimo-nos sempre honrados pelas suas visitas. Gratidão pela leitura!