Fantasia sombria, nove pontos de vista e um pé fincado na discussão de escolhas e consequências: é assim que The Alchemy of Fate apresenta a autora Logan Avery ao público. Na conversa a seguir, ela detalha o caminho entre um sonho inicial e a construção de uma trilogia que combina alquimia, política e romances nada óbvios.
Publicada como autora independente e hoje trabalhando no segundo volume de Sons of the Congregation, Avery defende protagonistas femininas ativas e moralmente complexas, flerta com arquétipos como “Bela e a Fera” e Hades/Perséfone e se arrisca em uma arquitetura narrativa pouco comum no subgênero “romantasy”: nove narradores. O objetivo, diz, é conter a tentação do maniqueísmo e dar lastro aos conflitos de mundo.
O que o leitor vai encontrar. Ao longo da entrevista, Avery comenta:
- como transpôs referências de física (buracos negros) para um sistema de magia inteligível, sem jargão desnecessário;
- os dilemas de gerenciar informação em múltiplos POVs (quem sabe o quê, quando e por quê);
- a cadência de cena em ação versus introspecção — e o uso deliberado dos cinco sentidos como gatilho de imersão;
- decisões de posicionamento de mercado, da tradução para o inglês ao papel da edição em português, com impacto direto na legibilidade;
- e o lugar da IA no fluxo de trabalho, com ênfase em controle de ferramenta e responsabilidade autoral.
Para quem escreve, a conversa oferece material prático: soluções de foco por personagem, critérios de versão (o que fica, o que sai) e a defesa de que segundas chances — na vida e no texto — fazem parte da engenharia do enredo.
INÍCIO DA ENTREVISTA
Logan Avery (na foto) é autora de The Alchemy of Fate, o primeiro livro da série Sons of the Congregation.
É formada em Engenharia, mas escolheu sair da sua área de atuação e se aventurar no mundo da fantasia romântica.
Hoje, ela vive o próprio romance contemporâneo na Noruega.
Mundo Escrito: O que inspirou você a escrever The Alchemy of Fate? Houve alguma experiência pessoal, leitura ou mito que serviu como ponto de partida para a trama?
Logan Avery. Eu tive um sonho. Eu sonhei com três princesas de diferentes reinos que se uniram em prol de um mundo mais justo para as mulheres. Uma das princesas era uma musicista. A segunda princesa era uma mulher em STEM (que é a sigla para mulheres cientistas). A terceira, uma princesa guerreira. Juntas elas mudariam os paradigmas sociais enquanto tentariam não se apaixonar pelos vilões, os atuais reis/príncipes herdeiros dos 5 reinos desse mundo imaginário.
Eu sempre gostei de livros com personagens moralmente duvidosos e estórias como A Bela e a Fera e o conto de Hades e Perséfone. Também sempre apreciei fantasias sombrias como O Jogos dos Tronos. Então, eu acabei juntando tudo nessa obra que, a princípio, seria uma trilogia.
Nessa trilogia, eu procuro não desapontar a ideologia feminista, apesar dos romances. As personagens femininas são destemidas e pouco influenciáveis.
A ambientação do livro — seus sistemas de magia, crenças e sociedades — é bem rica. Você pode falar sobre seu processo criativo ao desenvolver esse mundo? Houve algo que foi especialmente difícil ou que evoluiu bastante ao longo das revisões?
L.A. Eu tentei me manter o mais original possível. Mas hoje em dia a ficção é tão rica que às vezes eu me senti andando em uma corda bamba. Quando o leitor chega, mais ou menos, aos 80% da leitura do livro, ele pode inclusive comparar The Alchemy of Fate (A Alquimia do Destino) com A Quarta Asa, apesar de a história não se tratar de enredos com dragões, a princípio. A questão da alquimia e da bruxaria veio com facilidade, porque eu acabei misturando o que eu sei da teoria dos buracos negros de Stephen Hawking, trazendo-a para um mundo fantasioso e fácil de se entender.
Em contrapartida, foi muito difícil gerenciar 9 diferentes pontos de vista, o que cada um dos personagens sabia e com o que cada um deles poderia contribuir. Tive, ao mesmo tempo, que ser “um pouco atriz”, no sentido de incorporar o personagem, mudando drasticamente o estilo ao escrever.
Dos personagens que você criou, qual deles mais desafiou você (seja para escrever, seja para entender)? E há algum com quem você mais se identifique ou com o qual sinta uma ligação especial?
L.A. Aminde, a princesa musicista, foi sem dúvidas a mais complicada. Isso porque nós duas não temos absolutamente nada em comum, e pensar como ela acabava sendo uma tarefa bem exaustiva. É fácil se colocar no lugar de um personagem pragmático. As coisas sempre seguem uma linha racional, óbvia. No entanto, pensar como um personagem que é um vendaval de emoções é um pesadelo. Tudo parecia ser possível do ponto de vista dela, e encontrar a solução mais plausível foi uma tortura.
Eu sou engenheira; logo, Katherine foi a mais fácil. A princesa em STEM, cientista.
E atualmente eu estou amando escrever o livro dois, pois ela é a personagem central, em um enredo no melhor estilo “de inimigos a amantes”.
Sobre que temas ou dilemas você espera que os leitores reflitam após terminar o livro? Existe uma mensagem, intencional ou não, que você gostaria de que ficasse com eles?
L.A. O primeiro livro explora a reflexão de Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser, no qual ele afirma que o caminho do “e se…” não existe, pois a única alternativa real da vida é a decisão que fora tomada, ao passo que o “se eu tivesse feito isso desta outra maneira” é, portanto, um pensamento tolo, uma perda de tempo.
Até os erros cometidos fazem parte da jornada da vida, e eles integram o resultado: o destino de uma pessoa.
Eu deixo, então, uma pergunta final: “Se somos meramente o produto de nossas primeiras escolhas, não seriam as segundas chances o verdadeiro propósito do universo desde o começo?”.
Você já tem planos para continuações, spin-offs ou um universo expandido? E como você enxerga sua evolução como autora a partir deste trabalho?
L.A. Sim! Estou trabalhando no livro dois agora. Eu quero que seja uma trilogia.
Acho que me tornei mais prática com o tempo. Como autora independente, eu tive que ser editora e tradutora, e palavras custam caro. A praticidade deixa a estória mais leve e fácil de ser entendida.
Ferramentas digitais e inteligência artificial fazem cada vez mais parte do processo de escrita. Você utiliza algum recurso tecnológico nesse sentido? Como ele impacta — positiva ou negativamente — o seu processo criativo?
L.A. Eu digo normalmente que AI é para nos servir, e não para nos trair. Eu acredito que a grande maioria das pessoas usa AI (IA em português) e nem sabe disso.
É importante saber exatamente com o que se está lidando. AI já faz parte do nosso dia a dia. Até ferramentas de tradução são AI, bem como as de correção gramatical. A minha dica é: saiba o que você está usando, as consequências do uso desses recursos e se é você quem está no controle, e não o contrário.
Você segue alguma abordagem específica para equilibrar exposição, ritmo narrativo e desenvolvimento de mundo — especialmente em uma história de fantasia com elementos complexos?
L.A. Há autores que escutam músicas para manter o ritmo. Eles colocam a mesma música no repeat e a escutam até finalizarem a cena. Eu, honestamente, não tenho nenhuma tática específica para ritmo. Eu simplesmente tento seguir o bom senso. Não dá pra ser muito introspectiva se eu estiver descrevendo uma batalha, por exemplo.
Quanto à construção de mundo, eu tento me colocar no lugar do personagem, buscando sempre usar os 5 sentidos. O que eu perceberia primeiro? A resposta certa nem sempre é o visual. A ordem certa da percepção sensorial é o que faz o leitor entrar de corpo e alma na cena, se sentindo coadjuvante nela.
Eu sempre me pergunto “o que eu perceberia primeiro se eu estivesse ali?” antes de começar a descrever a cena.
Houve alguma escolha estilística, estrutural ou de ponto de vista que você considerou arriscada, mas decidiu manter por acreditar na força narrativa dela?
L.A. Não foi uma decisão comercial manter 9 pontos de vista. A grande maioria das pessoas manteria o dual POV e apenas narraria os dois personagens principais em uma romantasy (fantasia romântica). Eu decidi manter todos eles porque só assim eu poderia descrever o mundo apropriadamente, mostrando a evolução dos personagens, bem como todos os enredos políticos e as ameaças vindas de todos os lados. Eu não queria uma estória de mocinhos contra bandidos. Queria que todos os personagens tivessem sua parcela de mocinho e de bandido; para isso, tive de escrever múltiplos pontos de vista.
Outra decisão que foi crucial para o meu trabalho foi traduzir o texto para o inglês. Uma sugestão feita pela Mundo Escrito, inclusive. A revisora Gabi foi certeira aí! Infelizmente, esse tipo de livro não teria público se fosse disponibilizado apenas em português.
E, se você quer ter um trabalho traduzido com clareza, é essencial que se tenha o esboço em português feito de maneira correta. Por isso o trabalho de edição em português é importante até mesmo para traduções. A não ser que o seu nível de conhecimento da língua estrangeira seja suficientemente elevado para se escrever diretamente nela.
FIM DA ENTREVISTA
A fala de Logan Avery interessa especialmente a autores que investigam estrutura e ponto de vista. Ao sustentar nove vozes, ela amplia o escopo político da narrativa sem abrir mão do arco emocional — e deixa claro o custo técnico dessa escolha: controle de informação, coerência estilística e revisão pesada.
Aprendizados acionáveis.
- POV como estratégia de mundo: múltiplos pontos de vista para evitar “heróis vs. vilões” simplificados.
- Sistema de magia decantado: metáforas científicas a serviço da clareza, e não do exibicionismo.
- Ritmo guiado por cena: menos regra, mais pertinência — batalha pede verbo e gesto; confissão, silêncio e detalhe sensorial.
- Edição como investimento: traduzir amplia alcance, mas depende de um original limpo; isso porque, quando o texto está bem-revisado, facilita o processo de tradução.
- IA sob curadoria: recurso é ferramenta, e não atalho — conhecer limites e impactos mantém a voz autoral.
Se The Alchemy of Fate parte de um sonho. A execução revela método: escolhas que fecham portas, abrem caminhos e sustentam uma pergunta útil a qualquer escritor — na página e fora dela: o que fazemos com as segundas chances que o texto (e o processo) nos oferece?