O Dr. Aristocléverson Gomes Dias dos Santos (OAB/GO 44.932) é Secretário-Adjunto da Comissão de Direito Constitucional e Legislação da OAB/GO.
Nesta entrevista concedida com exclusividade à Mundo Escrito, O Dr. Aristocléverson responde questões ligadas à degravação/gravação como prova judicial.
O intuito da entrevista foi encontrar algumas respostas sobre a utilização e a validade desse material no decorrer dos processos.
— Início da Entrevista —
Mundo Escrito (ME): Qual a importância da degravação para o sistema judiciário como um todo (defesa, acusação, magistratura, processo)?
Dr. Aristocléverson: Antes de apontar a importância da “degravação” ao sistema judiciário é importante aclarar que “degravação” é a transcrição escrita do documento em áudio e/ou vídeo. Agora adentrando a resposta, imagine um processo com maior complexidade composto de vários indiciados, horas e horas de depoimentos dos mesmos, testemunhas e diligências conforme art. 402 do Código Processo Penal. Conseguiu imaginar? Agora imagine um juiz, advogado, membro do Ministério Público ou defensor público sendo constituído após essas inúmeras provas gravadas em áudio e/ou vídeo, veja que, caso não tenha a transcrição, ou seja, a “degravação” dessa imensidão de provas, será necessário tempo e muito recurso humano para ver e/ou ouvir as devidas gravações para se familiarizar com todo o processo; ou seja, diante do exposto podemos concluir que a ampla defesa pode até ser mitigada.
ME: Quais seriam os pontos positivos e negativos da transcrição para um advogado ou escritório de advocacia?
Dr. Aristocléverson: Acredito que as gravações de áudio e/ou vídeo somadas às transcrições ou apontamentos realizados pelo Poder Judiciário, pelo menos dos principais pontos das audiências, seriam um ponto positivo; contudo, o que temos na prática são advogados com a incumbência de transcrever os principais pontos das gravações por terem conhecimento que os julgadores não dispõem de tempo para reproduzir e analisar todas as gravações, sendo este o ponto negativo.
Vale advertir que o Poder Judiciário tem a delegação de transcrever as gravações de áudio e/ou vídeo porque a jurisdição é monopólio estatal conforme artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e não de terceiros.
ME: Quais seriam os pontos positivos e negativos da transcrição na fase de inquérito policial?
Dr. Aristocléverson: O ponto positivo da transcrição, por exemplo, seria em uma investigação em fase de inquérito policial em que devem ser ouvidos vários investigados, ofendidos e testemunhas: facilitaria o trabalho do defensor e da autoridade policial, exigindo destes uma simples leitura das informações levantadas. Contudo há de se mencionar o que as transcrições não captam: o comportamento do indivíduo, a linguagem corporal, o tom de voz e outros aspectos de quem está depondo, fatos estes que podem evidenciar e auxiliar na decisão do juiz.
ME: Há alguma previsão legal para a transcrição no ordenamento jurídico brasileiro? Há algum momento processual em que a transcrição seja obrigatória?
Dr. Aristocléverson: O art. 9º do CPP nos diz, in verbis:
Art. 9º. Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e neste caso, rubricadas pela autoridade.
Veja que no referido artigo ainda consta que o processo poderá ser datilografado, nítido desacerto com as inovações tecnológicas e com o art. 405, §1º do mesmo Código, ex vi:
Art. 405. Do ocorrido em audiência será lavrado termo em livro próprio, assinado pelo juiz e pelas partes, contendo breve resumo dos fatos relevantes nela ocorridos.
§ 1º. Sempre que possível, o registro dos depoimentos dos investigados, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações.
§ 2º. No caso de registro por meio audiovisual, será encaminhado às partes cópia do registro original, sem necessidade de transcrição.
Mesmo o art. 9º do CPP indicando que a peça do inquérito policial seja reduzida a escrito é indiscutível que as gravações em vídeo e/ou áudio otimizaram o tempo da autoridade policial.
ME: Qual o melhor tipo de transcrição: literal (DEPOENTE: Eu vi um homem) ou ata (Depoente relata que viu um homem)?
Dr. Aristocléverson: Acredito que o principal objetivo desta resposta está sujeito à “qualidade do depoente” em prestar com máxima riqueza de detalhes e fidelidade aos fatos de sua ciência questionados para maior lucidez no desdobramento do caso concreto.
ME: Qual é a validade da transcrição como prova documental?
Dr. Aristocléverson: O art. 232 do CPP considera documento quaisquer escritos, instrumentos ou papéis públicos ou particulares, ou seja, a transcrição tem validade de prova documental; contudo, o que se deve ter em mente não é apenas a transcrição, mas sim a aferição de autenticidade no caso de uma gravação apresentada como documento, para se verificar se existiu cortes ou inclusão de falas e/ou imagens, trabalho esse que requer expertise e conhecimento técnico como os de um perito.
ME: Conversas gravadas transcritas podem ser consideradas contratos verbais?
Dr. Aristocléverson: Quando estudamos os contratos, o ponto de partida é que os mesmos são um negócio jurídico bilateral definido como ato de autonomia de vontade das partes, não dependendo de forma especial (princípio da liberdade de forma), salvo quando a lei exigir, como, por exemplo, os negócios que versam sobre direito real e pacto antenupcial.
O artigo 107 do Código Civil nos diz:
Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.
A princípio deve ser observada a validade do contrato verbal analisando se este atende aos requisitos do art. 104 do CC, que são estes: se os agentes são capazes; se o objeto é lícito, possível, determinado ou determinável; se na forma é prescrita ou não defesa em lei; e mais um elemento oculto: manifestação de vontade. Ou seja, requisitos todos indispensáveis para a validade do negócio jurídico.
Portanto o contrato verbal deve ter a existência comprovada e também encontrar-se em conformidade com o art. 104 do CC para ser transcrito. Ocorrendo caso de litígio a gravação pode ser usada como prova juntamente com a gravação que lhe deu origem.
ME: Qual é o grau de robustez de uma prova oriunda de um testemunho em juízo em comparação a uma conversa gravada e transcrita?
Dr. Aristocléverson: O juiz tem total liberdade de eleger as provas que crer importantes para convencimento próprio, dando às provas produzidas o peso que entender cabível, sejam elas testemunhas ou gravações transcritas, ou seja, não há hierarquia entre as provas. Veja que é possível, a título de exemplo, que uma testemunha desbanque uma prova pericial, ou até mesmo uma confissão, considerada ainda por muitos a rainha das provas. Vale lembrar que o juiz, mesmo tendo liberdade de apreciação das provas, é obrigado a motivar/justificar sua decisão, não podendo proferir decisões com base em expressões vazias tais como “as provas arroladas pela parte autora não permitem que exista declive à dúvida”.
ME: Qual a sua visão sobre o direto à privacidade (art. 5.º, inciso X, CRFB/1988) em face da gravação ambiental e interceptação telefônica, feita pela própria pessoa ou por profissional contratado para tanto?
Dr. Aristocléverson: Para melhor elucidar a resposta é fundamental entender a diferença entre gravação ambiental e interceptação telefônica: esta é a captação de comunicações telefônicas por um terceiro sem que os interlocutores tenham conhecimento do feito, já aquela é a colheita de áudios e/ou imagens feita por uma pessoa sem que uma ou mais pessoas comunicantes conheçam sua intenção. A segunda deve sempre ser precedida de autorização judicial, enquanto a primeira não.
Sob a luz do art. 5º, inciso X, da CRFB/1988, entendo que não há de se falar em afronta ao direito à privacidade quando há a interceptação telefônica, até porque o juiz, antes de conceder autorização judicial para o referido ato, vai constatar os requisitos necessários para tal medida conforme §2º da Lei n.º 9.296/96 (Interceptação Telefônica).
Vale transcrever o art. 5º, XII da CRFB/1988, in verbis:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; (grifo meu)
Veja que estamos diante de um direito fundamental, contudo não absoluto, até porque possui limitações, e foi assim que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade da admissibilidade do meio de prova realizada por gravação ambiental desde que seja ato excepcional e de interesse de quem fez a gravação para sua defesa. Tenho plena convicção, por exemplo, que a “Lava Jato” chegou aonde chegou principalmente pelas inúmeras gravações ambientais realizadas pelos interessados em produzir provas de defesa.
ME: Num processo, qual a diferença legal entre uma transcrição com gravação e uma ata notarial?
Dr. Aristocléverson: A transcrição de gravação assim como a ata notarial podem ser consideradas provas no bojo de qualquer processo, contudo esta última é um instrumento público e redigido por tabelião de notas, profissional este dotado de fé pública que autentica os fatos relatados pelas partes de forma fiel. Nas transcrições de gravações, como já disse, deve-se verificar a veracidade/autenticidade das mesmas para não incorrer em transcrever, por exemplo, fatos repletos de cortes e/ou inclusão de áudios e imagens estranhos à prova em questão.
Como citar esta entrevista:
SANTOS, Aristocléverson Gomes Dias. Degravação usada como meio de Prova Judicial. 2018, Goiânia-GO. Entrevista concedida à Mundo Escrito. Disponível em https://mundoescrito.com.br/degravacao-gravacao-prova-judicial-entrevista-oab/
— FIM da Entrevista —
O que você achou da entrevista? O tema “degravação/gravação usada como prova judicial” tem sido muito buscado desde que a tecnologia facilitou a gravação e a justiça passou a usá-la com mais frequência em processos judiciais. Fique à vontade para comentar. Sua participação é muito importante e pode agregar ainda mais valor!
Saudações, editor(es) do Mundo Escrito! Tudo bem?
Passo mais uma vez por aqui para parabenizá-los pela escolha do tema.
Em tempos de alta operosidade da Polícia Federal e do Ministério Público, somos praticamente todos os dias atropelados por escândalos de toda ordem, e uma imagem que não falta nos telejornais é a da transcrição das conversas travadas entre os meliantes (de colarinho branco ou não).
As contribuições do jurista convidado são valiosas do ponto de vista de dar conhecimento do arcabouço legal que ampara a transcrição ou degravação como se usou chamar aqui. Contudo, penso que existem questões ainda de natureza metodológica que precisam ser cada vez mais levadas ao conhecimento das pessoas que lidam com esse mister com vistas a uma sistematização ou uma normalização de procedimentos de transcrição. Penso ainda que quanto mais sistematizada, mais confiável a transcrição como elemento integrante de um processo como o judicial.
Sugiro, a título de contribuição, a leitura do trabalho exaustivo do Prof. MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986. (Série Princípios).
Ali se apresenta um quadro-proposta de sistematização que acredito precisa ser conhecido e divulgado.
Desculpo-me se me estendi em demasia e deixo o meu abraço a todos.
Caro, Cláudio! Muito obrigado pelo seu novo comentário em nosso blog. Suas colocações são muito interessantes, tanto neste post quanto no da entrevista com o Marcos Bagno (https://mundoescrito.com.br/marcos-bagno-entrevista/).
Sim, no Brasil a transcrição (ou degravação – transcrição usada para fins legais) é um termo ainda emergente para o grande público. Entretanto, como você bem citou o Marcuschi (temos essa obra e também a “Da fala para a escrita, atividades de retextualização”), há quem já venha se debruçando sobre essa atividade de transposição da fala em texto de maneira aprofundada, tecnicamente. Assim como a do Marcuschi, temos, entre outros, a grande contribuição do Professor Ataliba de Castilho (Cols.) no projeto NURC, de grande peso.
Se uníssemos o conhecimento oriundo desses autores à tecnologia de edição de áudios que hoje é avançada e de fácil acesso, muito mais informações conseguiríamos colher das falas gravadas dessa turma!
Olá, saberiam me dizer onde fazer 1 curso de transcrição e degravação forense, aqui em sp?
Obrigado pela atenção.
Infelizmente não conhecemos, Cesar. Mas, certamente, em São Paulo você não vai ter dificuldade para encontrar. Talvez tenha cursos online também. Sentimos muito por não termos essa informação para lhe passar.
Oi pessoal, tudo bem?
Obrigado pela matéria. Gostaria de saber como é o processo para apresentar a degravação de um áudio como prova judicial e se isso tem que passar por algum órgão específico ou pelo cartório para ser legitimado?
obrigado