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Marcos Bagno, renomado professor da UnB, doutor em filologia, linguista e escritor brasileiro, em entrevista concedida à empresa Mundo Escrito, responde questões formuladas por nossa equipe a respeito de alguns aspectos dos serviços de revisão de texto e transcrição de áudio.

 

Perguntas de um revisor a Marcos Bagno

 

1) Sabemos que a língua portuguesa evolui com o tempo, mas não houve até agora mudanças na NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira). O que você sugeriria como mudança à Norma?

MARCOS BAGNO: A NGB já tem mais de cinquenta anos. Sua publicação é anterior a muitos desdobramentos importantes das ciências da linguagem. Seria fundamental rever essa nomenclatura à luz dessas novas aquisições teóricas, conceituais. Há erros flagrantes na NGB, como a atribuição de uma “concordância de grau”, que não existe (o grau é um processo de derivação), a classificação de “artigos indefinidos” (que de fato são quantificadores indefinidos), a delimitação de uma “classe” de numerais e outra de interjeições etc. Para fins pedagógicos, o mais adequado seria apresentar a terminologia consagrada e promover uma crítica a ela. Por exemplo, todas as gramáticas dizem que sujeito e predicado são termos essenciais da oração, mas todas também dizem, às vezes na mesma página, que existem “orações sem sujeito”. Se o sujeito é essencial, isto é, se faz a oração ser o que é, como pode haver orações sem sujeito. Além disso, e talvez mais importante, é reconhecer de uma vez por todas que a função da escola no tocante à educação linguística é desenvolver as habilidades de escrita e leitura, e que as velhas análises morfológicas e sintáticas não servem rigorosamente para nada.

2) Gostaria de saber se, na sua opinião, os nossos dicionários acompanham a evolução da nossa língua.

MARCOS BAGNO: Os dicionários já foram classificados como “cemitérios de palavras”, porque, tão logo são publicados, as palavras já sofreram mudanças em seus significados e sentidos, até mesmo porque entre a elaboração da obra e sua publicação o tempo transcorrido costuma ser longo. Nenhum dicionário de nenhuma língua dá conta de apreender todo o léxico e todas as significações das palavras. Por isso, temos de abandonar a ideia de que “se não está no dicionário é porque não existe”. Felizmente, nos dias de hoje, com os avanços tecnológicos, os dicionários podem ser atualizados quase em tempo real e, melhor ainda, sem gastar papel. Já não tão felizmente, a tradição lexicográfica do português é muito pobre, sobretudo quando comparada à de outras culturas linguísticas como a do espanhol, do inglês e do francês.

 

Revisora que leu “A língua de Eulália” e assistiu a uma palestra de Bagno

 

Como um revisor deve se portar diante de algum “erro” sob a ótica da Norma, quando o autor desconhece que, para alguns linguistas, trata-se apenas de uma variante?

MARCOS BAGNO: O trabalho do/a revisor/a é um desafio, precisamente porque a pessoa tem de encontrar um equilíbrio entre as prescrições tradicionais e os usos autênticos da língua. Para conhecer esses usos autênticos, é necessário informar-se para além da tradição gramatical e sobretudo para além de obras estreitamente puristas, como manuais de redação de empresas jornalísticas e livros do tipo “não erre mais”. Querer preservar a mesóclise, por exemplo, é no mínimo ridículo. Impedir o uso de pronome oblíquo em início de frase é igualmente ridículo, porque esse uso corresponde perfeitamente à fonética do português brasileiro e não há nada de errado com ele. Mas não existe resposta simples para essa questão, porque muitas vezes a/o revisor/a acaba substituindo um suposto erro por outro, como já vi acontecer. Além disso, o conhecimento que as pessoas têm da “norma” é extremamente variado, até porque a própria “norma” é flutuante, imprecisa e contraditória.

O revisor de textos é um guardião da eficiência comunicacional? Se sim, ele deve se ater mais do que o autor ao uso da língua padrão escrita?

MARCOS BAGNO: O problema é pensar que existe uma “língua padrão escrita”, quando de fato o uso da escrita é tão variável e mutante quanto o da fala. Basta ver que mesmo os gramáticos normativos têm posições distintas com relação a certos fenômenos do uso. O que de fato existe são representações de um padrão, que variam de acordo com a formação do/a revisor/a, sua postura ideológica diante dos usos da língua e até mesmo seus gostos pessoais. Já vi pessoas dizendo que, mesmo que determinado uso esteja sancionado pelos bons dicionários, elas se recusam a admiti-lo. É o caso da flexão do advérbio “meio” no feminino: “ela está meia triste hoje”. Esse uso aparece em Camões e Machado de Assis e o dicionário Aurélio faz uma boa explicação dele. Também é o caso do uso do “se” em construções do tipo “vende-se casas”, em que a tradição exige um plural que não tem a menor lógica. Bechara, em sua gramática, contesta a tradição. Por fim, “eficiência comunicacional” é um conceito igualmente flutuante e impreciso.

Em seus livros, você não usa variantes linguísticas na escrita dos seus textos. Isso não contradiz a teoria objeto deles?

MARCOS BAGNO: Ninguém escreve sem usar variantes linguísticas, porque mesmo as formas consideradas “certas” são variantes, já que o conceito de variante abarca toda e qualquer forma específica de uso. O problema é achar que “variante” é o mesmo que “forma popular” ou mesmo “erro”. É muito comum encontrar a acusação de que nós, linguistas, defendemos as formas “erradas” mas não as usamos em nossos textos. Há várias confusões aí, resultantes de uma compreensão superficial do que escrevemos ou, o que é mais comum, de posturas ideológicas conservadoras. Em meus textos eu emprego muitas formas tradicionalmente condenadas mas já de uso perfeitamente enraizado na nossa língua, inclusive na literatura mais consagrada. Eu uso “ele” como objeto direto, não faço concordância com “se”, sigo certas regências inovadoras etc. O importante para mim é que o/a revisor/a não queira ser mais realista do que o rei e “corrigir” usos que já estão há muito tempo cristalizados na língua e até na escrita literária, usos que aparecem abonados em boas gramáticas e bons dicionários. Como escreveu o linguista Carlos Alberto Faraco, é preciso abandonar a “norma curta”, rígida, inflexível, e deixar rolar a verdadeira norma culta brasileira contemporânea. Tenho um livro chamado Não é errado falar assim! em que abordo os principais usos condenados pelos defensores da “norma curta” e mostro que já estão há muito tempo presentes na verdadeira norma culta brasileira.

 

Perguntas de um transcritor

 

1) Na sua opinião, qual o melhor modelo de registro da fala?

MARCOS BAGNO: Existem diversos modelos de transcrição da língua falada, alguns deles empregados em trabalhos científicos que se dedicam ao estudo da fala autêntica. Os critérios variam muito porque dependem dos interesses específicos do trabalho. Mas o que se reconhece, mesmo no campo da linguística teórica, é que toda transcrição é inevitavelmente enviesada, até mesmo por ter de se valer da ortografia convencional. Nem mesmo a transcrição fonética dá conta da complexidade da fala, porque deixa de lado fatores importantíssimos como o ritmo, a entoação etc. Assim, convém deixar bem explícitos os critérios empregados na transcrição e tentar respeitá-los o máximo possível.

2) Qual sua opinião sobre o copidesque (a correção ortográfica e gramatical para publicação) de transcrições de áudios baseadas na fala, que naturalmente possui inúmeras discordâncias da norma culta?

MARCOS BAGNO: Para começar, temos que definir o que se entende por “norma culta”, e o que se entende por “norma culta” em geral é uma confusão dos diabos! E é exatamente essa confusão, inevitável, que gera as incontáveis diferenças nas transcrições. Além disso, muitas transcrições, principalmente na mídia, são enviesadas ideologicamente, o que se evidencia pelo uso das aspas: em transcrições de diálogos telefônicos, por exemplo, é comum aparecerem coisas como “pra”, “tem” (= há), “te” (em correlação com “você”), como se esses usos fossem “errados”. No entanto, outros supostos “erros” não recebem aspas. Conforme disse na resposta anterior, o importante é definir previamente os critérios e tentar segui-los coerentemente.

3) Qual sua opinião sobre utilizar oralmente a norma culta do português no dia a dia?

MARCOS BAGNO: De novo, a bendita “norma culta”. Para nós, linguistas, a norma culta é precisamente o uso oral da língua por parte de pessoas classificadas como “cultas”, isto é, com vivência urbana e alto grau de letramento. É preciso distinguir a norma culta da norma-padrão, que é o conjunto de prescrições tradicionais sobre o que é certo e errado.

4) É preconceito linguístico uma pessoa falar uma variante coloquial com uma pessoa que não a conhece? Ex.: a pessoa de uma comunidade fala gírias da sua comunidade para alguém que pertença a outra.

MARCOS BAGNO: A noção de preconceito linguístico tem a ver com posicionamento ideológico, com atitudes socioculturais, não se aplica usos linguísticos determinados. O exemplo da gíria não é muito feliz, porque não se define aí o que se entende por gíria.

5) Sobre o determinismo linguístico (hipótese de Sapir-Whorf)

a. Caso concorde que ele influencie o pensamento humano:

i. Qual sua opinião sobre a fluência na norma culta (ou variantes cultas) da língua portuguesa influenciar mobilidade ou liberdade social na sociedade brasileira?

ii. É possível estabelecer modelos mentais de uma pessoa baseando-se na organização de seus pensamentos expressada pela escolha de suas palavras e construções frasais?

b. Caso não concorde que ele influencie o pensamento humano, por favor, explique por quê.

MARCOS BAGNO: A pergunta sobre a mobilidade social e sua relação com o uso da norma culta (que, afinal, ninguém sabe o que é!) não cabe numa discussão sobre a hipótese Sapir-Whorf (que não é uma hipótese sobre o determinismo, mas sobre o relativismo linguístico, que são coisas bem distintas). A hipótese Sapir-Whorf teve grande sucesso quando foi proposta, nos anos 1940-50, em seguida foi duramente rejeitada e agora, a partir dos 1990, vem sendo atualizada por muitos pesquisadores que, com experimentos, mostram que, sim, há influência das estruturas morfossintáticas da língua sobre a cognição. Mas essa é uma discussão complexa que não cabe fazer aqui.

 

Perguntas de uma revisora professora dos ensinos fundamental e médio na rede pública

 

1) Considerando a educação pública no Brasil, com desinteresse dos estudantes e falta de capacitação/atualização dos professores, como ensinar a Língua Portuguesa Brasileira escapando do gramaticismo, mas sem deixar de fornecer ao aluno as ferramentas que ele necessitará (ainda que somente para ENEM, vestibulares ou concursos, carreira literária/acadêmica etc.)?

MARCOS BAGNO: A educação pública no Brasil é classificada entre as piores do mundo e, se depender dos golpistas que assaltaram o poder, em pouco tempo se tornará a pior. Faz muitas décadas que linguistas e educadores insistem que a educação linguística deve se fazer na articulação de três eixos: leitura, escrita e reflexão sobre a língua. O trabalho constante com textos autênticos, de diversos gêneros, é o que pode levar alguém a desenvolver plenamente suas capacidades de leitura e escrita. A reflexão sobre a língua vem incorporada a esse trabalho, mas tem de ser feita sem a insistência inútil em nomenclaturas nem em análises estéreis de pedaços de textos falsos. São propostas de renovação do ensino feitas há pelo menos trinta anos, mas que não alcançam a sala de aula por causa das péssimas políticas educacionais que temos.

2) As crianças estão inseridas em um mundo global, com vídeos do Youtube abundando frases que misturam português e inglês (exemplo: “dropei meu curso de inglês”. Poderíamos aperfeiçoar o ensino de Português Brasileiro aproveitando neologismos que serão ou não dicionarizados?

MARCOS BAGNO: Não devemos ter medo, em sala de aula, de nenhuma inovação da linguagem. Ao contrário, devemos entrar em contato com elas, apreendê-las e utilizá-las como objeto de ensino-aprendizagem da língua. Seria até uma forma de atrair mais o interesse dos aprendizes.

3) Hoje é possível inserir sociolinguística nos livros didáticos de Português. Mas, ainda, a Academia não ensina a lidar com situações como as relatadas nas perguntas 1 e 2; nem ensina como lidar com as reações dos pais que esperam um ensino tradicional focado na gramática. Quando ensinamos sobre preconceito linguístico existe uma barreira social: os familiares esperam que suas crianças se diferenciem pela erudição (que não ocorrerá na escola obviamente). Em um mundo tão competitivo, parece que ninguém quer parar para pensar e fazer as coisas de modo diferente. Há esperança?

MARCOS BAGNO: O quadro descrito acima é bem realista. Muitas vezes me sinto pessimista, mas quando encontro pessoas engajadas na educação e dispostas a enfrentar todas as barreiras, a esperança renasce.

— Fim da entrevista —

Esperamos que você tenha gostado da entrevista. Se desejar, por favor, fique à vontade para comentar abaixo o que desejar. Sua participação é muito importante!

Conheça os livros do Marcos Bagno.

 

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