Vamos hoje falar sobre as funções do diálogo. Em nosso ofício de revisar textos literários, notamos com frequência que, ao escreverem seus romances, muitos autores têm dúvidas em relação à melhor maneira de criar um discurso direto – ou seja, de elaborar diálogos em textos narrativos.
Antes de entrarmos de fato nas funções do diálogo, é importante que entendamos no que consiste um diálogo.
Diálogo vem do grego, diálogos, e significa “por intermédio da palavra”, ou simplesmente “conversa”. Portanto, é uma importante ferramenta para marcar, de forma direta, sem a interferência absoluta do narrador, as vozes das personagens que compõem a obra.
Em termos de estrutura, um diálogo é basicamente dividido em duas partes: os discursos e os incisos.
Os Discursos
São as frases diretas, em geral iniciadas por um travessão, que são proferidas pelas personagens de uma história.
Exemplo:
— É verdade que você vai à praia amanhã, Maria?
— Sim, João. Pretendo ir à praia amanhã antes do horário de almoço.
Os Incisos
São as elucidações propostas pelo narrador, em geral também iniciadas por um travessão, com o intuito, por exemplo, de apontar determinadas reações das personagens, de contextualizar a cena ou de deixar explícita uma ação ou um gesto das personagens.
Exemplo:
— É verdade que você vai à praia amanhã, Maria? — perguntou-lhe o irmão.
— Sim, João. Pretendo ir à praia amanhã antes do horário de almoço. — A jovem respondeu, enquanto pendurava algumas peças de roupa no varal.
Todavia, compreender como um diálogo funciona em termos estruturais não é suficiente para garantir o seu uso mais adequado – afinal, este não deve acontecer de modo indiscriminado.
Em um bom texto literário, há sempre razões específicas que levarão o autor da obra a intercalar trechos de discurso indireto – ou seja, o narrador contando a história – com a incidência de trechos cujo discurso é direto.
As 5 principais funções do diálogo
Abaixo, listaremos 5 das principais funções do diálogo:
Função de aproximar mais as personagens do leitor
Uma das funções do diálogo é conectar o leitor às personagens da história. Muitas vezes o leitor pode encontrar uma certa dificuldade em se conectar com as personagens presentes em uma determinada obra. Por mais detalhista e habilidoso que o narrador seja em relatar as emoções e os pensamentos de suas personagens, não há dúvidas de que o diálogo, quando bem feito, tem a capacidade de tirar as personagens da impessoalidade e trazê-las mais para perto do leitor, de modo que, imaginando as frases saídas de suas bocas, possa ter uma noção mais ampla daquilo que tais personagens experimentam ao longo da história.
Exemplo:
— Por que você quer ir à praia amanhã, Maria? — Curioso como de costume, João sondava a irmã, na intenção de saber se existia algum motivo especial para que ela se dispusesse a ir tão cedo à praia.
— Por quê? Talvez porque eu esteja cansada de passar o dia inteiro cuidando das tarefas domésticas, enquanto você, bonitinho, fica na rua com a molecada e não lava um copo sequer. Mas amanhã será diferente. Vou cuidar um pouco de mim, me bronzear e me distrair. Você que se vire pedindo uma quentinha. E nada de incomodar a mamãe e o papai no trabalho, ouviu? — Maria deixou claro, limpando o suor que escorria de sua testa e terminando de estender no varal a última peça que restava em suas mãos.
Perceba que, com esse diálogo, o leitor consegue não apenas assimilar os motivos que levam Maria a querer ir à praia como também faz com que se sinta mais próximo à personagem, como se, pelo modo como ela expressa sua opinião, o leitor pudesse se colocar melhor em seu lugar e criar, portanto, uma ligação, um vínculo pessoal com ela. Neste caso, seria mais interessante do que a utilização impessoal de uma narração indireta.
Veja:
Quando questionada pelo irmão sobre o porquê de seu súbito desejo de ir à praia, Maria respondeu-lhe que estava cansada das tarefas domésticas, já que fazia tudo sozinha, enquanto o irmão se divertia com os amigos na rua, e que necessitava de um tempo para si, para se bronzear e se distrair. Disse ainda que João, no dia seguinte, deveria comprar uma quentinha para o almoço e alertou-o de que não perturbasse a mãe ou o pai por causa disso, que estariam no trabalho.
Função de revelar informações-chave íntimas das personagens em momentos de virada
Em algumas partes de uma obra, em momentos de virada, é interessante que informações-chave bastante íntimas de algumas das personagens sejam reveladas por meio de um diálogo. Tal fato acaba instigando o leitor, além de imprimir mais realismo à cena. Essa estratégia pode, inclusive, causar um grande impacto na narrativa.
Exemplo:
— Meu amigo viu você lá perto do Centro ontem de manhã. E lá é o caminho oposto ao da praia, Maria. Aonde é que você estava indo? Não acredito que mentiu! — João dizia, em um tom de voz acusativo.
— Você quer mesmo saber aonde fui? Não fui à praia coisa nenhuma. Satisfeito? É isso mesmo, eu menti. Fui encontrar com o meu namorado. De que adiantaria falar a verdade, se ninguém na família apoia meu relacionamento? — Maria desabafava, um tanto quanto descontrolada, alterando o tom de voz ao falar com o irmão.
Perceba que, com esse diálogo, há uma dramaticidade mais forte com a revelação, em vez de o narrador simplesmente fazer o papel de mediador por meio do uso do discurso indireto.
Veja:
João interrogava a irmã, dizendo-lhe que um amigo a havia visto no Centro no dia anterior. Deixava claro, em tom de ironia, que lá era o caminho oposto ao da praia. Queria que ela confessasse, que dissesse para onde tinha ido. Maria, sentindo-se encurralada, desabafava, assumindo que havia mentido para ele e que tinha ido encontrar o namorado. Ressaltava que só mentiu pois ninguém na família aprovava o relacionamento. Estava visivelmente descontrolada.
Função de enfatizar sentimentos ou pensamentos específicos das personagens
A estratégia de dar ênfase, por meio do diálogo, a algum sentimento ou pensamento em específico das personagens é também interessante de ser utilizada em algumas partes da narrativa. Entretanto, é preciso que ocorra pontualmente, e não indiscriminadamente, pois, do contrário, poderá, em vez de enriquecer o texto, empobrecê-lo com o excesso de ênfases desnecessárias e repetitivas.
Exemplo:
— Eu odeio essa criação machista que nossos pais nos deram! Odeio ter que fazer todas as tarefas domésticas sozinha! Odeio que meu namoro esteja sujeito a tantos julgamentos, enquanto você, João, pode namorar as meninas do bairro que quiser, que ninguém liga, que ninguém te critica!
— Maria berrava, batendo a porta do quarto e se trancando dentro.
— O que foi, garota? Está de TPM hoje, é? Ou você enlouqueceu de vez? — João debochava.
Perceba que, com esse diálogo, há uma ênfase dada aos sentimentos de Maria – ênfase esta que acontece por meio de seu discurso.
Ao mesmo tempo, há uma ênfase proporcional relacionada ao que o irmão pensava, que demonstra, em seu discurso, claramente considerar um exagero a maneira com que Maria reagiu ao questionamento que lhe fizera.
Contudo, é importante que diálogos semelhantes a esse, ou seja, com as mesmas informações, ainda que passadas em frases diferentes, não aconteçam exageradamente ao longo da obra, do contrário tendem à repetição.
A ênfase dada aos sentimentos e pensamentos das personagens, expressos por meio do diálogo, tem o poder de dar um destaque mais contundente ao que já ficou claro na obra. Deste modo, confere nuances um pouco diferentes das que o discurso indireto poderia oferecer:
Maria começava a berrar. Vociferava que odiava a criação machista recebida pelos pais. Ela odiava ter de fazer todas as tarefas domésticas sozinha, odiava que seu namoro fosse motivo de julgamento severo, enquanto o irmão não precisava fazer nada em casa e ainda podia namorar as meninas que quisesse, sem que isso incomodasse a família. Após verbalizar sua opinião, batia a porta, trancando-se no quarto. João, por sua vez, encarava a cena com deboche, chegando mesmo a perguntar à irmã se ela estava de TPM ou se havia enlouquecido de vez.
Função de dar mais ritmo à história
Uma das funções do diálogo é dar ritmo à história. Após parágrafos repletos de descrições ou após longos parágrafos com ações apresentadas por meio exclusivo da narração, a utilização de um diálogo é uma estratégia que ajuda a dar mais ritmo à história, subitamente levando um “refresco” ao leitor, fazendo com que a sua atenção não se perca e com que a história não corra o risco de ficar maçante ou pouco fluida.
Exemplo:
Naquela noite, contrariando a vontade dos pais, Maria resolvia ir ao encontro do namorado. Já estava tarde e pegar o transporte público não era lá muito seguro na metrópole onde vivia. A menina, no entanto, não sentia medo. Estava revoltada com as imposições familiares e, para se acalmar, precisava estar junto ao homem por quem tinha se apaixonado. Impulsiva, pegava o primeiro ônibus que passava com destino ao bairro do amado.
É verdade que o ônibus em questão não fazia o trajeto mais rápido, dando voltas, inclusive, por partes da cidade onde Maria nunca sequer havia estado. Ainda assim, em nenhum momento ela se arrependeu. Aliás, isso só serviu para reafirmar a si mesma o quanto era corajosa e o quanto amava Lucas. Sim, amava. Fazia pouco tempo que o conhecia, mas foi amor instantâneo, e esses sentimentos não podem ser negligenciados, não ocorrem todo dia, refletia.
Sabia que ele não era o genro dos sonhos e que seus pais tinham lá certa razão em não confiarem no rapaz, afinal, Lucas tinha saído recentemente da cadeia: havia cumprido cinco anos de prisão por assalto à mão armada, mas fora libertado por bom comportamento.
Maria não tinha dúvidas quanto à mudança do namorado e repetia sempre, para quem quisesse ouvir, que ele apenas precisava de uma chance para poder mostrar o quanto saiu transformado da penitenciária.
Após mais de uma hora dentro do ônibus, descia no quarteirão que Lucas lhe havia indicado. A rua tinha uma iluminação fraca e era pouco movimentada. As casas, todas bastante humildes, eram bem diferentes das que faziam parte de sua vizinhança. O que mais deixava Maria impressionada, entretanto, eram os muros pichados. Eram vários, e ela reconhecia nas pichações a abreviação de uma das facções do tráfico que dominava a cidade.
Um pouco assustada, levava as mãos ao bolso da calça, arranhando o tecido jeans, tentando conter o nervosismo. Então, menos de cinco minutos depois, dois homens mal-encarados viravam a esquina, caminhando em sua direção, na calçada onde estava. Maria gelava. Não sabia se corria e atravessava a rua, se gritava por socorro, se parava de andar. Por fim, resolvia agir o mais naturalmente possível, mantendo o ritmo de seus passos. Percebendo a beleza da jovem, um dos sujeitos dizia, com jeito de malandro:
— O que é isso, irmão? Uma gatinha dessas dando rolê sozinha aqui na quebrada, a essa hora da noite?
— Qual foi, princesa? Está perdida? Se quiser, eu posso te dar um rumo rapidinho. O que acha de ir visitar o meu cafofo? — O outro falava, dando em seguida uma risadinha maldosa.
Função de oferecer pistas ao leitor
A estratégia de oferecer pistas ao leitor por meio de um diálogo também é bem-vinda em textos literários. Desse modo, pode-se desde antecipar e prometer uma ação até, por exemplo, tornar o leitor cúmplice da situação que se desenrolará a partir do discurso.
Exemplo:
— Não cheguem perto! Não venham, não, senão vocês vão se arrepender.
Ignorando o que Maria havia dito, os dois homens avançavam até ela, já na intenção de agarrá-la. A jovem, todavia, provava que sua ameaça não tinha sido em vão. Sem que eles esperassem, já que não colocavam fé nas palavras da jovem, tirava da bolsa que carregava a tiracolo um spray de pimenta. Borrifava o gás nos olhos de ambos. Enquanto ambos levavam as mãos ao rosto e gritavam para ela impropérios, Maria aproveitava para correr. Corria muito, como se não houvesse amanhã, metendo-se em uma viela paralela e subindo uma escadaria íngreme, com muitos degraus. De repente, encontrava um portão de ferro entreaberto. Resolvia empurrá-lo, entrando ali e encostando-o sem fazer barulho. Estava tudo escuro. Maria ficava abaixada, colada ao muro, que não era tão alto. Seu coração saltava à boca. De olhos fechados e ouvidos atentos, rezava em silêncio, pedindo proteção divina contra os possíveis assediadores.
Em um próximo artigo, listaremos mais funções do diálogo em textos narrativos e falaremos também sobre algumas condições necessárias para que, de fato, os diálogos sejam eficazes.
Neste link você encontra uma aula de Rubens Marchioni sobre como deixar os diálogos mais verossímeis.
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Explicação interessante e muito elucidativa sobre as funções do diálogo em texto narrativo. Parabéns e obrigado!
Olá, Chauke! Obrigado pelo seu comentário e incentivo. Volte mais vezes!