“Como escrever?” — Lorenzo, chef de cozinha, sempre se pergunta. Já no seu ateliê gastronômico, produz obras que levam os poucos privilegiados a vivenciarem experiências de intimidade com o Paraíso. Depois de um mergulho nas formas, aromas e sabores do seu trabalho, impossível manter a condição de agnóstico.
Dia desses me falou do seu desejo: “Como escrever?” E então pensei no sabor que daria ao seu texto. Que ingredientes usaria. Quais as peculiaridades. De que maneiras prenderia o estômago mental de seu leitor. Que tipo de encantamento provocaria na câmera que fotografasse cada um dos seus pratos literários.
Estou certo de que, na primeira mordida, o leitor identificaria, com precisão, a principal matéria prima – um bolo de nozes. É que essa fruta estaria lá, na medida certa, com todo o frescor que só se encontra na originalidade, e sem imprecisões. É assim, no texto, quando o substantivo é utilizado de maneira adequada. Porque ele dá precisão à imagem que se pretende transmitir.
Por outro lado, não se trataria de uma maçaroca de palavras. Ao contrário, um texto que joga bem com frases monofásicas, binárias e ternárias fica arejado. E um prato arejado não provoca indigestão. Assim será o trabalho com a assinatura exigente de Lorenzo, acostumado a um padrão muito alto de qualidade e à prática do virtuosismo. Afinal, ele não é um mero fazedor de comida. Trata-se de um profissional que atua no ramo de encantar paladares. Na escrita não será diferente.
Aceitando o convite para orientar seu trabalho, agora longe da cozinha e diante do computador, pensei numa metáfora que falasse o seu idioma – conexão, nesse caso, é fundamental. Convidei-o a imaginar que vai se dedicar à preparação de determinado prato, o melhor que o mercado já experimentou.
Comecei por lembrar que ele precisará de recursos essenciais. O primeiro, uma cozinha com utensílios dos mais diferentes tipos e produzidos com a melhor matéria prima, ou seja, aço, cerâmica, louça, alumínio, madeira etc. Ela deve estar extremamente bem equipada, porque não se aceita improvisações quando o assunto é profissionalismo. Manusear um pedaço de filé mignon com uma faca de cortar pão? Espremer limão usando um utensílio de metal, correndo o risco de alterar o sabor? Impensável.
Assim, e para atender as exigências dessa primeira etapa, Lorenzo precisa investir pesado na leitura chamada instrumental. Trata-se daquela que mostra o processo criativo de grandes escritores, nacionais e internacionais. Revela o caminho das pedras para a produção de textos consistentes, com uma arquitetura bem elaborada e competente, longe dos antigos paradigmas e fórmulas prontas. Numa palavra, textos refratários a qualquer questionamento. O mercado dispõe de boas obras nesse sentido. Eu tenho uma série delas. Afinal, esse é o meu trabalho, e não posso brincar em serviço.
Por outro lado, deve buscar o máximo de literatura, onde puder, a fim de construir o que existe de melhor em termos de massa crítica. O escritor não pode ser um profissional que pensa qualquer coisa, ou coisa nenhuma, a respeito do complexo mundo em que vive. Ao mesmo tempo em que não deve se apresentar como alguém imaturo, que fala apenas de flores, quando lá fora o mundo está acabando devido a graves conflitos sociais e uma pandemia. Além disso, não convém se mostrar um velho ranzinza, para quem a vida é feita de perguntas horríveis, todas sem resposta possível. Porque as pessoas querem saber que uma pergunta gera uma resposta, e que ela, imperfeita, gera outra pergunta, outro desafio.
Portanto, o escritor precisa ter senso crítico, posições claras, capacidade para ver com critério, julgar e agir de maneira científica. Sem se entregar a pensamentos rasos, gerados pela preguiça ou incapacidade para raciocinar. Além de ter um posicionamento bem pensado e saber como deseja ser visto. Um exemplo é o anúncio extremamente criativo do restaurante D’Amico Cucina: “Não servimos almoço. Levamos o dia inteiro para preparar o seu jantar.” Caso contrário, seu prato literário terá o inconfundível sabor de subnitrato de pó de nada. Quando isso acontece, o leitor paga a conta e nunca mais volta.
Agora vamos retomar o prato a ser elaborado por Lorenzo. Ele não será feito de uma vez. Meu amigo vai trabalhar em etapas. A primeira consiste em preparar o suporte a partir do qual serão colocados os demais ingredientes – roteiristas e escritores o chamam storyline. Se contar com instrumentos adequados vai produzir o que há de melhor e mais consistente.
Já na segunda parte, reunirá os melhores ingredientes, por meio da sua massa crítica e do poder de discernimento – nada com sabor aproximado, não vale substituir limão taiti por galego ou cravo. Um a um, ele vai empregar o ingrediente exato, os melhores, nacionais e importados, com a melhor procedência – no Fasano, as alcachofras são importadas da Itália. Tudo para conquistar um leitor cada vez mais exigente. Caso contrário, no final ele conseguirá qualquer coisa, menos aquilo que se propôs entregar ao seu leitor, e a rejeição será automática.
Para cada etapa do processo, na escrita, Lorenzo deve ser muito exigente. E isso tem de acontecer na mesma intensidade com que se empenha para superar todas as suas expectativas ao cozinhar para clientes do restaurante sofisticado onde pilota uma cozinha pra lá de rigorosamente profissional.
No primeiro momento, portanto, a leitura de muitas obras de referência, instrumentais; em seguida, o acúmulo de muito conhecimento sobre o mundo e o ser humano, em todas as suas formas de expressão. Sem um armário bem equipado, não se elabora um prato refinado, por mais que se disponha da melhor matéria prima. Sem conteúdo, o aroma, o sabor e a qualidade finais deixarão a desejar. Isso, ainda que o chef conte com um invejável arsenal de instrumentos. Por fim, a leitura, em voz alta, com ouvido de maestro, com o propósito de identificar a exigência de ajustes à sonoridade da obra, detalhe por detalhe.
Você viu? O “como escrever” não é difícil, é apenas trabalhoso. Por meio de sua literatura, Lorenzo prestará um grande serviço se abastecer o paladar refinado de cada cliente e isso levá-los a pensar que a vida pode não terminar aqui – “a eternidade existe, a experimentei enquanto jantava” seria uma ótima conclusão. Amém.
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