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Você sabe como desvendar o mistério de uma história policial? Quase dois séculos após o seu surgimento, as histórias policiais continuam figurando nas listas de livros mais vendidos, enchendo as salas de cinema e sendo tema de séries de sucesso.

Mas o que faz com que uma narrativa seja considerada uma boa história policial? E ainda: quais são os pontos essenciais que um leitor precisa compreender para desvendar o mistério da história? É o que vamos descobrir hoje em mais um texto da categoria gêneros literários.

Antes de tudo, vamos entender um pouco mais sobre o mistério da história policial. Na verdade, existem duas divisões principais no gênero policial: o mistério e o suspense. Mas, nesse momento, vamos analisar a primeira dessas subcategorias, com suas principais características, regras e truques.

 

1. A construção do mistério

 

Na trama de mistério, como o próprio nome já diz, existe um segredo a ser desvendado no decorrer da narrativa. Na maioria das vezes, esse segredo diz respeito à identidade do culpado de ter cometido algum crime, geralmente um ou mais assassinatos.

Basicamente, esse é o enredo da chamada “história policial clássica”, conhecida em inglês pela expressão whodunit, uma contração da frase “Who done it?” (literalmente, “Quem fez isso?”). A expressão também pode ser traduzida para o português como “Quem é o culpado?” ou, mais simplesmente, “Quem matou?”.

Agora que já sabemos o ponto essencial da construção de um mistério clássico, vamos analisar características de algumas obras consagradas no gênero para compreender os pontos que um leitor deve dominar a fim de desvendar o mistério de uma história policial.

 

2. O poder do Detetive

 

Um detalhe muito interessante a respeito da clássica história de mistério Eu, Detetive é que se trata mais de uma espécie de jogo de adivinhação do que propriamente um texto literário. Nessa história, um elemento que não pode faltar, obviamente, é a figura do Detetive, personagem que é um alter ego do leitor e para quem são apresentadas as “pistas” que possibilitam a solução do problema. Desse modo, o leitor se envolve na trama a ponto de se propor um desafio para achar o culpado — talvez, por isso, as histórias policias sejam um sucesso tão grande.

Esse Detetive pode ser mesmo um policial ou um detetive particular (como Sherlock Holmes, célebre criação de Arthur Conan Doyle, ou o igualmente famoso Hercule Poirot, de Agatha Christie); mas também pode ser uma espécie de detetive amador (como o próprio C. Auguste Dupin, criado por Edgar Allan Poe e considerado o primeiro detetive da ficção, ou a simpática velhinha Miss Jane Marple, outra marcante criação de Agatha Christie).

Seja como for, esse personagem costuma possuir uma inteligência fora do comum, junto com uma extraordinária capacidade de perceber detalhes, que constituem as suas principais armas para elucidar o mistério.

 

3. A importância do Ajudante

 

Em muitas histórias, o Detetive é acompanhado pela figura do Ajudante, alguém de inteligência normal, mas que parece estúpido em comparação à genialidade do Detetive — traço que cria oportunidades de alívio cômico para a tensão da investigação em que o leitor se encontra.

Geralmente, o Ajudante é também o narrador, possibilitando que a história seja apresentada pelo seu ponto de vista: o de uma pessoa comum, para quem os detalhes que cercam o mistério são absolutamente incompreensíveis, necessitando da paciente (e irônica) explicação do Detetive a cada etapa do mistério. Assim, o Ajudante funciona duplamente como “escada” do Detetive, sendo um frequente alvo de suas piadas e, ao mesmo tempo, evidenciando a superioridade intelectual que o Detetive possui.

Como a falta de sagacidade é compensada por um espírito nobre e corajoso e também por uma lealdade a toda prova, o Ajudante costuma ser muito querido pelo público, tanto quanto o Detetive é admirado. Algumas das principais histórias de mistério se utilizam dessa figura do Ajudante, com destaque para: o doutor John H. Watson, narrador de As aventuras de Sherlock Holmes; o capitão Arthur Hastings, cronista das principais narrativas de Hercule Poirot; o narrador anônimo das três clássicas histórias em que C. Auguste Dupin aparece: Os Assassinatos da Rua Morgue, O Mistério de Marie Rogêt e A Carta Roubada.

 

4. Leitor versus Detetive

 

O jogo proposto pela história de mistério As regras do jogo pode ser considerado uma disputa entre o leitor e o Detetive: ganha quem descobrir primeiro a identidade do culpado. É claro que esse tipo de história exige uma estrutura narrativa bem determinada, com uma série de regras fixas que precisam ser seguidas pelo autor, para que o jogo funcione.

Essas regras chegaram a ser explicitadas por S. S. Van Dine, pseudônimo utilizado pelo crítico de arte norte-americano Willard Huntington Wright, criador do detetive Philo Vance. Em 1928, Van Dine publicou um artigo intitulado “Vinte regras para escrever histórias de detetive”, que se tornou famoso.

Com o passar do tempo, algumas dessas regras deixaram de fazer sentido, outras foram questionadas e até mesmo propositalmente quebradas por outros autores, mas de modo geral continuam servindo de referência para as histórias de mistério. Seguem as principais delas:

  • O leitor deve ter a mesma oportunidade que o detetive para solucionar o mistério. Todas as pistas devem ser claramente enunciadas e descritas.
  • Nenhum truque ou engano intencional pode ser utilizado com o leitor, exceto aqueles utilizados legitimamente pelo criminoso contra o próprio detetive.
  • O culpado deve ser determinado por deduções lógicas — não por acidente, coincidência ou confissão forçada. Resolver um problema criminal dessa maneira é como enviar o leitor em uma busca sem sentido e depois dizer, depois que ele falhou, que você tinha o objetivo de sua busca na manga o tempo todo. Um autor assim não é melhor do que um brincalhão.
  • O problema do crime deve ser resolvido por meios estritamente naturais. Métodos para aprender a verdade tais como tabuleiros ouija, leitura de mentes, sessões espíritas, bolas de cristal e similares são proibidos. O leitor tem uma chance quando pode medir sua inteligência com a de um detetive racional, mas se ele tiver que competir com o mundo dos espíritos e com a quarta dimensão da metafísica, já está derrotado desde o início.
  • O culpado deve ser uma pessoa que desempenhou um papel mais ou menos proeminente na história — ou seja, uma pessoa com quem o leitor está familiarizado e em quem ele se interessa. Se um escritor coloca a culpa do crime, no capítulo final, a um estranho ou pessoa que tenha desempenhado um papel totalmente sem importância, está confessando sua incapacidade de medir sua inteligência com a do leitor.
  • A verdade do problema deve ser sempre aparente — desde que o leitor seja perspicaz o suficiente para vê-la. Com isso, quero dizer que, se o leitor, depois de aprender a explicação do crime, reler o livro, verá que a solução, de certa forma, estava bem à vista — que todas as pistas realmente apontavam para o culpado — e que, se ele tivesse sido tão esperto quanto o detetive, poderia ter resolvido o mistério por si mesmo antes do capítulo final. Se uma história policial é justa e legitimamente construída, é impossível ocultar a solução de todos os leitores. Inevitavelmente, haverá um certo número deles tão perspicaz quanto o autor; e se o autor mostrou o devido espírito esportivo e honestidade em sua enunciação do crime e de suas pistas, esses perspicazes leitores poderão, por análise, eliminação e lógica, apontar o culpado assim que o detetive o fizer.

 

5. A quebra dos padrões

 

Agatha Christie foi, sem dúvida, o maior expoente da clássica história de mistério, a ponto de ser carinhosamente chamada de “Rainha do Crime” por seu exército de leitores fiéis. Grande parte do êxito dessa autora foi justamente devido à habilidade com que ela conseguia subverter as regras do jogo de dedução, sem jamais ser desleal com o leitor.

O segredo de seu fascínio estava em oferecer soluções perfeitamente plausíveis, mas que a princípio não seriam sequer consideradas como possibilidades pelo leitor habitual de histórias policiais. Foi assim que Agatha obteve alguns de seus maiores sucessos, como O Assassinato de Roger Acroyd, A Casa Torta, E Não Sobrou Nenhum (O Caso dos Dez Negrinhos) e Assassinato no Expresso Oriente. Todas essas histórias têm em comum o fato de a solução do mistério ser completamente inesperada — e em franca desobediência às regras traçadas por S. S. Van Dine!

 

6. O mistério hoje

 

A história de mistério clássica, fundamentada no jogo do whodunit, teve seu apogeu em meados do século passado, com uma impressionante profusão e diversidade de autores. A ponto de haver escritores especializados em temas específicos, como foi o caso de John Dickson Carr, considerado o mestre do “mistério do quarto fechado”, no qual o crime é cometido em um aposento trancado por dentro. Nesse caso, no tradicional jogo de dedução da identidade do assassino, o leitor ainda precisa elucidar o modo pelo qual o crime foi cometido, ou seja, como foi possível trancar o quarto por dentro depois de cometido o assassinato.

Hoje em dia, são raras as histórias exclusivamente de mistério. O lançamento do filme The Batman, com direção de Matt Reeves e previsto para 2021, promete reacender o interesse pelas histórias de mistério, ao apresentar o Homem-Morcego da DC Comics como “o maior detetive do mundo”.

O filme, que já está sendo aguardado com grande expectativa pelos fãs, segue a tendência atual de mesclar o mistério com outros gêneros, nesse caso com o tema dos super-heróis. Outra bem-sucedida mistura do mistério com outros temas pode ser conferida na série Harry Potter, em que a cada episódio a revelação da identidade de um determinado malfeitor concorre com a trama de aventura e fantasia.

A teledramaturgia brasileira, por sua vez, também oferece um dos exemplos mais marcantes de que dá certo juntar mistério com outros elementos na novela Vale Tudo, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, exibida pela Rede Globo entre 1988 e 1989. Campeã de audiência e considerada uma das melhores telenovelas brasileiras de todos os tempos, Vale Tudo fez tanto sucesso justamente ao aliar os temas novelescos tradicionais a um pungente mistério, que capturou a imaginação dos brasileiros: “Quem matou Odete Roitman?”.

Diante da compreensão desse panorama estratégico, construído com base em algumas das maiores obras do gênero, fica ainda mais empolgante e desafiador tentar desvendar o mistério de uma boa história policial. Portanto, se você gostou desse conteúdo, conte para nós nos comentários e inscreva-se para receber as próximas publicações da Mundo Escrito.

 

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