Nós, da Mundo Escrito, trouxemos mais uma entrevista para fechar a série intitulada “Dicas de escritores famosos para quem quer ser escritor”. Já entrevistamos outros três grandes escritores: Fábio Shiva, Luisa Geisler e Wlange Keindé. Hoje, o entrevistado é um dos autores contemporâneos mais lidos do Brasil, o nosso querido Raphael Montes.
Além de ser escritor, Raphael Montes já atuou como apresentador no programa Trilha de Letras, na TV Brasil, e foi colunista semanal no jornal O Globo. Como se não bastasse, ele ainda escreve roteiros de cinema e de televisão. E mais: ao final da entrevista, você vai ver que a biografia dele é muito rica e admirável, principalmente porque estamos falando de um escritor muito jovem.
Raphael vai falar de assuntos interessantíssimos nesta entrevista, como o seu processo de criação de personagens; o que, para ele, representa a Amazon e a Estante Virtual em relação ao trabalho dos escritores profissionais; o que ele pensa sobre a genialidade; qual a influência de Machado de Assis na literatura contemporânea; e muito mais.
A surpresa é que, além do texto que segue, ouviremos a própria voz do autor respondendo a cada uma de nossas perguntas.
– INÍCIO DA ENTREVISTA –
MUNDO ESCRITO – Sabemos que você é um autor que realmente vive dos seus escritos. Você atribui esse raro fato, no contexto brasileiro, a quê?
RAPHAEL MONTES – Você mencionou que eu sou um autor que vive dos próprios escritos. Mas o curioso é que, realmente, é muito difícil viver de literatura, no Brasil, não é? E eu mesmo não vivo de literatura, ou seja, eu vendo bem, tenho um bom número de leitores que felizmente acompanham o meu trabalho, torcem e recomendam – isso é muito importante –, mas não é suficiente como renda para uma pessoa, para um escritor, enfim.
Eu vivo dos meus escritos porque também escrevo para outras áreas. Já fiz colunas de jornal, fui colunista n’O Globo, semanalmente, por dois anos. Já apresentei programa de televisão, o Trilha de Letras, na TV Brasil. Além disso, escrevo roteiros de cinema e de televisão – projetos originais e outros projetos em que, às vezes, sou convidado por algum diretor de cinema.
Vivo dos meus escritos em nível geral, mas não exatamente apenas dos meus livros. Isso realmente é complicado. Mas, ao mesmo tempo, eu fico muito feliz porque não posso reclamar. Tenho muitos leitores e atribuo esse fato ao prazer que eu tenho de contar uma boa história com surpresas, com personagens complexos, e o leitor corresponde e gosta dessas histórias, fica preso a elas.
Então, atribuo à minha obra, ao fato de sempre querer contar uma boa história em primeiro lugar e, além disso, na medida do possível, levar reflexão, discutir temas que me interessam, provocar, fazer pensar. Isso é o que eu busco numa segunda camada, em todos os meus trabalhos.
ME – Ler e escrever provocam a genialidade ou ela vem de nascença?
RAPHAEL MONTES – Eu confesso que não acredito muito em genialidade. Eu acredito muito é em trabalho mesmo, em transpiração muito mais que inspiração. É óbvio que há momentos em que você está inspirado e, por isso, escreve melhor, escreve mais rápido; ou seja, aquele dia em que saem três, quatro páginas, em vez de sair uma página só. Esses são os bons dias – os dias em que eu estou inspirado.
Mas a maioria dos dias é transpiração; é ficar 12 horas sentado na frente do computador, tentando achar a palavra certa, tentando pensar como começa e como termina aquela frase, o que eu quero dizer com aquilo. Então, a maior parte do tempo é transpiração.
Talvez, aquilo que as pessoas chamam de talento eu chame de predisposição. Ou seja, você precisa de predisposição para ficar 12 horas na frente de um computador, para conseguir escrever o que você quer. Assim como um músico precisa de predisposição para treinar o seu instrumento durante 12 horas; tocar durante 10 horas sem parar. Então, eu confesso que prefiro ter os pés no chão e pensar que é trabalho.
ME – Observação de mundo e vida acadêmica: ambas as vivências são muito importantes para quem escreve. Mas, na sua opinião, o que tem mais relevância para o processo criativo?
RAPHAEL MONTES – Eu não tenho a menor dúvida de que é essencial para o escritor (para quem quer contar história) observar o mundo, observar as pessoas, se lançar no mundo. Eu faço algumas coisas para conseguir pegar histórias. Por exemplo, com frequência eu vou à rua usando um fone de ouvido sem estar escutando nada, desligado. Então, as pessoas pensam que eu estou escutando uma música, mas, na verdade, eu estou escutando o que está rolando ao meu redor.
Sem dúvida, a observação de mundo é importante. Vida acadêmica, para ser bem honesto, eu não acho que seja essencial para um escritor. É óbvio que ajuda, mas, também, pode atrapalhar. A observação de mundo é muito mais importante.
ME – Qual a importância de autores como Machado de Assis para a literatura contemporânea?
RAPHAEL MONTES – Eu sou um autor muito influenciado por Machado de Assis e por alguns outros, como o Jorge Amado. O que eu gosto nesses autores, o que me faz ficar entusiasmado com as obras e com a influência que eles exercem, ainda hoje, é o fato de que, a meu ver, são escritores que unem uma boa trama, uma boa história, o que algumas pessoas chamam de maneira vulgar ou pejorativa de “entretenimento”, mas, ao mesmo tempo, com muito estilo, com uma qualidade literária inegável.
Ou seja, são autores que ocupam esse espaço, que é muito difícil, de uma obra com qualidades literárias, com estilo, com inovações formais e estéticas e, ao mesmo tempo, se preocupam em contar uma boa história com surpresas, com personagens complexos e divertidos.
Por isso mesmo, é muito difícil você ficar nos dois lados, não é? Ou há aqueles autores que fazem a dita “alta literatura”, que é complexa, hermética e para poucos (e, a meu ver, chata) ou há aqueles que fazem uma literatura divertida, de entretenimento, mas, também, superficial. Conseguir ser profundo e complexo e, ao mesmo tempo, ser leve e divertido, é muito difícil. Machado consegue e eu espero conseguir isso também.
ME – Quando compramos um sapato muito caro, ele apresenta detalhes que o tornam nitidamente distinto de outros de preço inferior. Para você, o que torna um texto nitidamente distinto, independentemente do gênero e do estilo?
RAPHAEL MONTES – O que torna um texto distinto dos outros é algo inexplicável. É você começar a ler e se arrepiar, ficar surpreso, ansioso pelo que está por vir; você está lendo uma linha esperando pela próxima. Não tem explicação. Às vezes, é a voz do narrador; às vezes, são os personagens; às vezes, é o universo – a resposta não é uma só. Mas acho que é essa sensação que o leitor tem quando se depara com algo novo.
ME – Você percebe alguma transformação em si mesmo a cada novo livro que escreve?
RAPHAEL MONTES – Eu sempre digo que escrever um livro é como atravessar o Oceano Atlântico. E a verdade é que você nunca aprende a atravessar o Oceano Atlântico. Então, cada livro é um novo desafio; você acha que aprendeu algumas coisas a cada livro que acaba e, quando vai começar o próximo, vê que não aprendeu nada e que os problemas e as dificuldades estão lá, todas de novo.
Sem dúvida, eu busco, especialmente, a cada livro, fazer uma coisa diferente. Então, em alguns livros eu me foco mais em uma trama gráfica, em outros em uma trama psicológica e, em outros, eu quero explorar personagens – e cada vez mais personagens diferentes entre si.
Então, sem dúvida, eu me transformo ao logo dos anos, porque, enfim, envelheço e, ao mesmo tempo, os livros também apresentam novos desafios e, também, são muito diferentes. Eu acho que meus livros são todos diferentes entre si. Em Suicidas e Dias perfeitos há uma grande diferença. Suicidas é um livro mais gráfico, com muitos personagens – são mais de 20 personagens. O Dias perfeitos já tem dois personagens centrais em vez de 20 e é uma trama muito mais psicológica e tensa. O Jantar secreto tem uma personagem feminina muito forte e tem a chave do humor negro, que não aparecia tanto no Suicidas.
Então, em cada livro eu arrisco algum caminho. Até porque o desafio é o que também me move.
ME – Nesta “era” da ansiedade, a literatura tende a sofrer transformações?
RAPHAEL MONTES – Sem dúvida, eu fico muito espantado com a ideia de que, hoje em dia, um livro de 300 páginas é considerado grande, né? Ou seja, as pessoas, cada vez mais, querem consumir rápido e consumir produtos menores, para poder ir para o próximo, ir para o próximo e para o próximo…
Então, sem dúvida, sim, a literatura vai sofrer as transformações nessa “era” da ansiedade, como você chama. Cabe a mim, como escritor, e aos meus colegas, pensar como a gente pode continuar criando, continuar trabalhando nesse universo, mas, sem se render também, né? Ou seja, sem fazer o que se espera de nós. Afinal, o papel do artista é sempre tentar fazer o inusitado e não o que se espera.
Mas eu fico bastante atento ao fato de que estamos nessa “era” da ansiedade e como a leitura vai ser feita por essa geração que está vindo aí, acostumada ao Twitter, por exemplo.
ME – Você acha que livros com muitas páginas podem ser negativos?
RAPHAEL MONTES – Não. De maneira alguma eu acho que um livro de muitas páginas é negativo. Acho que o livro tem o seu tamanho próprio, seja ele com cem páginas ou com mil. O autor é que vai sentindo, conforme escreve a história.
ME – Você considera justo para o autor o sistema de participação por venda do livro físico (10-15%)?
RAPHAEL MONTES – A porcentagem de 10%, às vezes, 12% ou 15% é a praticada pelo mercado e, na medida em que os outros personagens da feitura do livro também pegam uma porcentagem desse valor, eu acredito que é o razoável para o mercado de hoje. Realmente não tenho informações para lhe dizer se esse valor deveria ser renegociado. 10% a 15% é o valor praticado pelo mercado.
ME – Como você vê a Amazon para o escritor profissional? E a Estante Virtual?
RAPHAEL MONTES – O que eu penso é que, infelizmente, a gente vive num país com muitas pessoas, mas, com poucos leitores. Então, tudo que vem para trazer mais leitores, eu acho que é positivo. Isso inclui a Amazon e a Estante Virtual. Ou seja, é possível entrar na discussão de que a Amazon atrapalha as livrarias e que a Estante Virtual não paga o direito autoral do autor e tudo isso é verdade, são discussões válidas.
Mas é inegável que a Amazon consegue entregar livros em todas as regiões do país e, num país como o nosso, de dimensões continentais, isso é muito importante. O mesmo vale para a Estante Virtual, que também vende livros mais baratos, apesar de, claro, não pagar a porcentagem do autor.
Então, na medida em que promovem a leitura e focam em alcançar mais leitores, eu acho os dois muito positivos.
ME – Os personagens de Suicidas são tão vívidos que dão a impressão de terem sido inspirados em pessoas reais. Isso de fato ocorreu? Como é o seu processo de elaboração dos personagens?
RAPHAEL MONTES – Eu acho que todos os personagens que um escritor cria têm um pouco dele mesmo, do próprio autor, das pessoas que ele conhece e das pessoas que ele viu em algum lugar e que criou toda uma história em cima dessas pessoas, mas sem de fato saber nada sobre elas; e também do imaginário, da invenção, da junção, da justaposição de características de um com outro. Ou seja, nenhum dos meus personagens em Suicidas, Dias perfeitos, Jantar secreto, O vilarejo ou em Uma mulher no escuro são exatamente uma pessoa específica que eu conheço – ainda que de vez em quando eu brinque com isso.
No Jantar secreto tem um personagem chamado Leitão, que é o nome de um amigo meu. Mas nunca o personagem é exatamente a pessoa real. Eu realmente gosto de criar personagens pensando não só como eu vou precisar dele na trama, mas tentando também entender sua essência. E, nisso, a imaginação é muito importante, não só se baseia numa pessoa real.
ME – Das suas obras, qual a sua favorita? Tem alguma que você gosta menos?
RAPHAEL MONTES – Depois que eu publico os livros, eu não os leio mais. Então, eu tenho a história de todos eles e o processo de escrita de cada um deles na minha memória. Antes de publicar, eu leio mais de 10, 15 vezes. Mas, depois de publicado, eu não leio mais. Então, na minha memória, eu tenho todos eles e, dependendo do dia, eu gosto mais de um ou gosto mais de outro; gosto menos de um, menos de outro. Todos foram muito difíceis de escrever, todos foram muito dolorosos e todos, depois de publicados, me deram muitas alegrias.
Suicidas foi o primeiro e foi finalista de prêmios; o Dias perfeitos foi o que estourou a minha carreira e está publicado em 23 países; o Jantar secreto teve uma ótima repercussão crítica; O vilarejo me trouxe um público novo, mais jovem, que curte história de terror. Então, cada um deles me trouxe uma alegria diferente; é muito difícil escolher o que eu mais gosto.
ME – Você está escrevendo algo por agora? Previsão de publicação?
RAPHAEL MONTES – Meu próximo livro se chama Uma mulher no escuro e vai ser publicado em maio – final de maio, início de junho – pela Companhia das Letras. É um suspense psicológico, com a minha primeira protagonista feminina. É um livro bem tenso e intenso; menos gráfico do que os meus anteriores, mais psicológico, mais denso e complexo em termos de personagem, eu acredito.
Enfim, estou ansioso para ver a repercussão dele também. Vamos ver. Grande abraço!
– FIM DA ENTREVISTA –
Raphael Montes nasceu em setembro de 1990, no Rio de Janeiro. Teve contos publicados em várias antologias de mistério, inclusive, na Playboy, na antologia Rio Noir, e na prestigiada revista americana Ellery Queen’s Mystery Magazine.
Seu primeiro livro, o Suicidas, publicado em 2017 pela conceituada editora Companhia das Letras, foi finalista de três prêmios importantes: Prêmio Benvirá de Literatura (2010); Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional (2012); e Prêmio São Paulo de Literatura (2013).
Já o segundo, Dias perfeitos, foi publicado em 23 países! Enquanto a terceira obra, Jantar secreto, ficou na lista de mais vendidas do mês e teve direitos de tradução vendidos para França, República Tcheca, Espanha e Polônia. Em maio deste ano, será lançado o seu quarto livro: Uma mulher no escuro.
Aqui está apenas um trecho de sua vasta biografia. Para ler a biografia completa deste grande autor, acesse o site: https://www.raphaelmontes.com.br/bio