Voltamos com a série Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa – Episódio 4.
No vídeo abaixo, Rubens Marchioni responde à pergunta de Felipe Holloway, sobre o valor da pesquisa de campo para a escrita de ficção.
Abaixo do vídeo está a reprodução em texto, editada ela equipe da Transcrição.
Nos 3 episódios anteriores, Rubens Marchioni respondeu, respectivamente, às perguntas de Fabio Shiva, de Wlange Keindé e de João G. Paulsen.
A seguir, transcrição realizada e editada pela equipe da Mundo Escrito. Agora você tem as Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa – Episódio 4 nas versões em vídeo e em texto.
Felipe Holloway
Oi, Rubens. Considerando que o trabalho do escritor, sobretudo escritor de matriz mais realista, consiste muitas vezes em lidar com a questão da verossimilhança, com imbuir determinados cenários e fatos, eu gostaria de saber se você considera a pesquisa de campo algo essencial para esse trabalho com a escrita ou se é algo que dependendo do cenário o escritor pode deixar mais por conta dessa questão do trabalho com a verossimilhança mesmo.
Rubens Marchioni
Oi, Felipe. Você me pergunta sobre a importância da pesquisa na hora de criar ficção. Tudo na vida requer pesquisa se você pretende atingir um nível de qualidade próximo do ótimo. Sem pesquisa é difícil acontecer isso. Vamos imaginar antes de entrar na ficção a criação de um produto, um computador, ou de um serviço, um cartão de crédito. É impossível, impraticável alguém acordar de manhã e pensar “vou criar um computador, vou criar um cartão de crédito e lançar”. Isso é um chute no escuro, porque as chances de se obter resultado do ponto de vista mercadológico ficam muito reduzidas. Você está tentando oferecer ao seu público, ao seu mercado a resposta para uma pergunta que ele não fez. Você está tentando solucionar um problema que de repente ele não tem, e aí seu produto ou serviço vai ficar encalhado. Você não vai vender.
Mas não vai vender nem significa que você não tenha feito algo de qualidade. Significa apenas que aquilo que você ofereceu naquele momento não atende uma necessidade, uma demanda do público, do consumidor naquela situação. Naquele contexto, naquele contexto econômico, por exemplo. Imagine todo mundo com pouco dinheiro por causa da crise do corona vírus, e aí você cria um novo produto de preço altíssimo. A chance de vender é pouquíssima.
Você precisa pesquisar. O contexto permite isso? O cenário atual, a realidade em que vivemos receberia bem esse produto, esse serviço? Com essas características, oferecendo esse benefício, por esse preço, dependendo deste sistema de distribuição, e anunciado por esses meios de comunicação? Tudo isso é pergunta. Tudo isso é pesquisa.
No final da segunda guerra mundial, as pessoas vindo de um cenário de muita escassez, muito sofrimento, queriam comprar um carro. Aí aparece um cara que diz “meu nome é Henry Ford e você pode comprar carro Ford de qualquer cor, desde que seja preto. Ele não precisou fazer pesquisa, porque havia uma demanda para carro, todo mundo sabia que não existia matéria-prima no mercado. A única possibilidade era de fabricar aquele modelo, e na cor preta. Não tinha escolha. Ou então não compra carro nenhum. Simples assim. Aí não envolvia pesquisa.
Mas hoje, falando do ponto de vista mercadológico, sem fazer pesquisa a chance de você criar alguma coisa, de criar um conjunto de ideais que seja inadequado ao mercado é muito grande. A chance de você escrever, por exemplo, um artigo ou livro que não respeita aquilo que a comunidade científica defende como válido para determinada situação, para resolver determinado problema, para resolver uma pandemia, por exemplo, se você não respeitou o que a OMS diz que deve ser respeitado e você tenta defender uma outra ideia diferente disso, ou seja, você vai na contramão daquilo que está sendo apresentado, é um pouco imprudente.
A pesquisa é sempre muito importante, porque ela te dá elementos para você poder trabalhar. E para você poder trabalhar tendo muitas possibilidades, para você entender o conteúdo que você está querendo escrever de diferentes maneiras, sob diferentes enfoques.
Eu li uma vez um texto que eu achei interessante escrito em um tom bem humorado sobre como a Eva decidiu comer a maçã. A serpente apareceu e falou para ela “Eva, come, é uma fruta docinha, é gostosa”. E a Eva respondeu “não, eu não vou comer, eu tenho um compromisso com Deus e não vou comer”. “Come, boba. Você vai ter o conhecimento do bem e do mal. Olha que maravilha. O que mais você quer? Só para dar uma mordida em uma fruta. É pouco, faça isso”. A Eva falou “não, de jeito nenhum”. E a serpente insistiu, “come, você vai se parecer com os anjos”. E a Eva de novo respondeu “não”.
Quando a serpente se deu conta de que a coisa não ia funcionar, ela apelou para o último recurso. Ela falou “come, boba, emagrece”. Não teve dúvida, a Eva comeu. Mas percebe? Para fazer esse texto, que dá menos de uma lauda, que é uma brincadeira, o cara que escreveu precisou conhecer um pouco de sagrada escritura, Bíblia, e precisou conhecer um pouco de comportamento humano, pelo menos esse básico de que a as pessoas vivem preocupadas o tempo todo, ou em boa parte do tempo, com a balança, e que alguns apelos são muito fortes para se vender uma ideia.
Agora, sem pesquisa, para você conhecer um pouco de sagrada escritura e saber como é que funciona essa questão do Adão e Eva, o que levou a Eva a cometer esse deslize e tal, você tem que conhecer um pouco desse assunto, senão você não produz. Sem matéria-prima, que você consegue por meio da pesquisa, você não produz.
Tem um texto que acho muito interessante, criado por uma agência de propaganda para o Conselho Britânico de Saúde. O objetivo era mostrar para as pessoas os riscos que elas correm quando deixam alimentos descobertos à disposição das moscas. Eu achei fantástico, porque o redator foi pesquisar para descobrir como é que a mosca funciona quando ela se alimenta. A mosca chega no alimento, come, depois ela solta excrementos sobre o alimento, mistura tudo isso criando uma papa (estou resumindo, porque tem mais detalhes) e depois vai embora. O texto termina “depois que ela fez tudo isso, aí chegou a sua vez”.
Só um redator muito bem informado, que pesquisou muito bem sobre como funciona a dinâmica de uma mosca consegue criar um texto com uma tragédia desse tamanho na cabeça do consumidor, do leitor. Você termina de ler esse texto e tem vontade de sair onde estiver e correr para casa para cobrir tudo que é alimento. Porque ele cria uma tragédia.
Quer ver outro exemplo ainda ligado à área teológica? Teve uma igreja católica nos Estados Unidos, quem mostrou esse texto para mim foi o Nizan Guanaes, que na época trabalhava na DPZ, na área de criação. Essa igreja tinha um problema. Ela se dava conta de que as pessoas jovens não frequentavam as suas celebrações, reuniões, liturgias, e encomendou uma pesquisa para descobrir o que acontecia. Descobriu nessa pesquisa que para o jovem igreja era coisa para velho. E aí eles fizeram um anúncio que eu achei fantástico, sem nenhuma pretensão, porque a pesquisa tem essa vantagem. Ela permite que você saiba tanto a ponto de conseguir compactar tudo isso numa única informação.
O texto dizia “se você pensa que igreja é coisa para velho, lembre-se que Jesus Cristo tinha 33 anos. Pronto. Quebrou as pernas. Como é que você vai negar uma mensagem, a veracidade dessa mensagem? Não tem como, porque 33 anos é um dado bíblico, mas para escrever você precisa conhecer, essa informação está na Bíblia, e você precisa saber o que vai pela cabeça do jovem, para poder cruzar as duas coisas e a partir daí sim criar uma mensagem realmente competente, curtinha, que vai direto ao ponto e que resolve o problema.
Eu li uma vez, não faz tanto tempo assim, o livro do Umberto Eco, e naquele livro eu tive essa sensação que ele resolveu contar uma parte da história. Sabe aquele livro que você lê e fala “então é assim que funciona? É bom saber disso, porque eu não sabia. Dá esse resultado porque você trabalha desse jeito?”. E ele diz “olha, meu amigo, é o seguinte. Sempre que eu vou escrever um livro, a primeira parte do trabalho é: eu passo anos, vários anos, coletando informação, pesquisando, indo buscar dados. Indo buscar dados nos lugares mais impensáveis possíveis”.
Por que isso? Primeiro porque quando ele senta ele sabe que está muito bem abastecido. Ele não tem meia dúzia de informação e vai ter que fazer milagre a partir daí. Segundo porque as possibilidades de associação de ideias. O que é criar? Fazer associação de ideias.
Agora vamos levantar um problema. Você tem no seu guarda-roupa quatro camisetas e três calças. Quais as possibilidades de associação que você tem? Muito poucas. Seu guarda-roupa, seu repertório, por falta de pesquisa, está muito mal abastecido, está muito pobre. Não tem repertório. Não tem vocabulário, não tem sinos diferentes, não tem maneiras diferentes de dizer. Às vezes alguém está revisando um texto meu e sugere uma mudança, eu falo “não, pode manter isso porque esse jeito de falar é válido em redação. Pode manter que não tem problema nenhum”, mas eu preciso saber que esse jeito é válido, e isso vem de leitura.
Agora, se você tem quatorze camisetas e quarenta e sete calças, as suas chances na hora de montar uma ideia, um argumento, de construir um texto, uma mensagem consistente, como essa da mosca, são muito maiores. Só que isso você só consegue por meio de pesquisa. Você precisa ter material, porque como dizia um professor que eu tive nos tempos de teologia, e ele podia falar isso, porque ele era, por exemplo, assessor teológico do Paulo Evaristo Arns, primeiro você precisa ter competência. Se você faz um livro, escreve um livro feito a partir de uma postura de quem é competente, ou seja, você tem algo a acrescentar, você agrega valor, e só é possível fazer isso por meio de pesquisa, de base, de cultura, de informação, de dados, de material, para você saber o que descartar e o que usar em que momento, se você faz isso você dá uma contribuição para a sociedade.
O escritor tem um papel social. Não só, mas ele tem também um papel social, então ele dá uma contribuição para a sociedade. E uma editora vai ter muito prazer de publicar o seu livro se ela percebe que aquele livro acrescenta, que vai ser bom ela ter aquele seu livro no catálogo, porque a editora também é uma empresa comercial que precisa vender, ainda bem.
Isso tudo significa pesquisa. Esse trabalho que a gente está fazendo aqui significa o quê? Pesquisa. Vamos ver como as pessoas que trabalham o texto fazem para dar certo. E eu gostei de ter respondido e participado dessa sua pergunta.
Não perca na próxima semana
“O apito do navio era como um lamento e cortou o crepúsculo que cobria a cidade”. Jorge Amado, Terras do Sem Fim. “Chamai-me Ismael”, Herman Melville, Moby Dick. “O céu sobre o porto tinha cor de televisão em um canal fora do ar”, William Gibson, Neuromancer. Rubens, o que você pensa sobre a primeira frase?
Assim, tivemos a resposta de Rubens para a pergunta de Felipe Holloway na série Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa – Episódio 4. Inscreva-se no formulário abaixo, para ficar a par dos próximos episódios e das próximas publicações no Blog.
E você? O que achou da resposta de Rubens Marchioni? Comenta dizendo. Até o próximo episódio!