Tempo estimado de leitura: 9 minutos

Retornamos com a série Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa – Episódio 2. Se ainda não viu o primeiro episódio, recomendamos que leia ou assista ao vídeo do Episódio 1, com a pergunta do escritor Fábio Shiva.

A pergunta de hoje é de Wlange Keindé. Ela é cientista social, escritora e criadora do Ficçomos (o maior canal sobre escrita do Brasil). É pós-graduanda em Roteiro Cinematográfico e mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada. Escreveu “A Criação do Escritor” e “Você Por Aqui?”; participa das antologias “O Movimento Leve” e “Elas: na outra face da fantasia”, entre outras.

A série Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa traz algo que geralmente não vemos por aí. Foram 9 perguntas de escritores profissionais – já com livros publicados e/ou vencedores de prêmios em concursos importantes de literatura – todas respondidas por Rubens Marchioni, expert em Escrita Criativa e autor do livro “Escrita Criativa – da ideia ao texto”, publicado pela Editora Contexto.

Outra atração da série é que as perguntas e respostas estão disponíveis tanto em vídeo como em texto (transcrição dos vídeos realizada pela nossa Equipe).

Vamos ao vídeo? Aí abaixo.

Leia abaixo a transcrição do vídeo feita e editada pela nossa equipe de Transcritores.

 

Pergunta de Wlange Keindé

 

Wlange KeindéOi, Rubens. Eu queria falar um pouco sobre essa divisão tradicional que temos entre um tipo de literatura considerada mais de valor, que agrada mais aos críticos literários, aos prêmios literários, e aquela literatura mais de entretenimento, que tem, segundo essa visão, uma maior chance de engajar um grande público. Você acha que essa é uma divisão que realmente é válida e, portanto, que os escritores, na hora de criarem suas obras, deveriam pensar em qual desses tipos de literatura querem escrever? Ou você acha que é possível chegar em um meio termo? Ou então simplesmente que essa é uma divisão que na ideia é ok, mas que na prática não se aplica realmente? O que você pensa sobre isso?

 

Resposta de Rubens Marchioni

 

Rubens MarchioniOi, Wlange. Você me fala sobre a questão de estilo acadêmico e estilo contemporâneo. Uma coisa que tenho repetido várias vezes, e isso deve ter algum motivo da minha parte, é que eu sempre vejo a literatura como também prestação de serviço. Mesmo que você entenda prestação de serviço como um sorriso, uma emoção. Isso é prestação de serviço. Você serviu àquela pessoa e provocou nela um sorriso, uma alegria, uma sensação de que o mundo não é também uma coisa feia e que não é só feito de pagar contas.

Quando você trabalha a literatura pensando em educar, em formar, em transferir conhecimentos, em desenvolver habilidades, atitudes, em vista de um valor ou de um conjunto de valores, e pensando isso no seu entorno, na sua comunidade, seja ela a cidade onde você vive, o mundo, o planeta, você está trabalhando o estilo acadêmico, se você pensar que, por estilo acadêmico, entendemos uma linguagem mais precisa, objetiva, exata, que deve eliminar no leitor qualquer possibilidade de dúvida, porque você não deixou brecha para dupla interpretação da mensagem. É uma linguagem mais acadêmica.

Mas você não precisa carregar isso. E aí uma linguagem mais contemporânea vai muito bem. Eu sou publicitário, trabalhei muito tempo como redator publicitário, e a redação publicitária é a linguagem contemporânea, na sua forma elegante, mas sem a dureza da linguagem acadêmica.

Estamos entendendo que as duas coisas têm seu espaço. E acho que isso já ajuda a entender para onde nós estamos caminhando. Agora, a melhor linguagem é sempre aquela que comunica, que serve, que atinge seus objetivos.

Eu vou pegar um exemplo que ficou muito claro. Nos anos 1980, quando houve a explosão da AIDS no mundo, a DPZ, a grande DPZ do Washington Olivetto, do Nizan Guanaes, Petit, os maiores criadores e redatores da propaganda no Brasil, e um deles no mundo, que é o Olivetto, criou um outdoor que dizia “a AIDS vai te pegar”. E, na época, muita gente se pronunciou contra essa mensagem, porque ela estaria incorreta, porque essa não seria a maneira de dizer “a AIDS vai te pegar”. Existiria um jeito mais acadêmico de dizer isso.

O problema é que esse jeito mais acadêmico poderia agradar a uma banca examinadora, na academia, mas não atingiria o público. Você não consegue imaginar, porque isso não acontece, alguém dizendo “a AIDS vai pegá-lo”, “a AIDS o pegará”. A gente não fala assim.

Quando quero me comunicar com você, quando quero que você sinta o que eu estou dizendo, como eu falo? “Eu vou te pegar, viu?”, “eu vou te pegar”. O jeito de causar esse impacto, no caso de uma tragédia como a AIDS, sem muita elaboração, é “a AIDS vai te pegar”. Está correto? Não sei. O que é estar correto? Academicamente correto? Pode ser que não. Mas se está correto e atingiu o objetivo, está corretíssimo. A DPZ continua sendo a DPZ.

Senão, se formos levar isso muito a sério, darei um exemplo para que entenda melhor o que quero dizer. Não é do seu tempo, nessa época você nem havia nascido ainda, mas filmes de faroeste dublados estavam em alta por aqui. Nesses filmes, por exemplo, aparecia um cara no cavalo perseguindo outro cara, e quem fazia a dublagem parecia não levar isso muito a sério. Você via o cara gritando “peguem-no! Peguem-no!” Você consegue imaginar alguém gritando “peguem-no”? Não tem. Ninguém fala desse jeito. Isso não existe.

Quando dou cursos de escrita criativa, eu sempre passo um exercício que chamo de batismo, que é um rito de passagem. É quando eu testo a capacidade do meu treinando de fazer a passagem. Se ele conseguir fazer com sucesso o que eu estou pedindo, ele conseguiu entrar nesse mundo. Eu peço para ele uma coisa muito simples. Eu peço para ele escrever aquilo que ele está pensando e sentindo no momento do jeito que ele está pensando e sentindo, sem elaboração. Inclusive, sem deixar isso mais bonito. Sem querer enfeitar. Falando exatamente como fala um ser-humano, que tem sangue, nervos, músculos, que pensa, que tem vontade de mandar tudo à merda, que é capaz de elogiar, de dizer palavras bonitas, de carinho, de valorizar, de acolher, de abraçar, de tudo isso, porque tudo isso é o ser humano, senão ele fica muito pasteurizado.

Os alunos em geral têm dificuldade para fazer isso. Por exemplo, e agora vou usar um palavrão aqui apenas com efeito pedagógico, mas senão eu também me privo da possibilidade de comunicar, se eu não fizer isso. Eu nunca li alguém, e olha que leciono há um longo tempo, que tivesse escrito algo do tipo “puta que o pariu, hoje ainda tenho que ir ao banco, tenho que trabalhar, e depois eu preciso ir até não sei aonde à noite. Que saco”. Nunca aconteceu isso. As pessoas enfeitam.

Agora, a comunicação não aconteceu, porque, na maneira de as pessoas falarem, é assim que a coisa acontece: é “a AIDS vai te pegar”. É uma linguagem que tem sangue, e é isso que precisa acontecer. É essa linguagem. Senão você vai naquele problema da afetação, em que a pessoa diz algo do tipo “terei eu passado na solene e sagrada prova de iniciação, venerável mestre da caça?”. Vamos dizer que isso tenha ficado academicamente bonito. Ficou, mas é só academicamente bonito, porque não comunicou necessariamente. Não atingiu resultado. E aí é um problema sério de conseguir entrar na natureza humana, que tem maldades, agressividade, carinho, afeto, tem tudo ao mesmo tempo, e jogar isso para a linguagem.

Eu vivia uma outra situação, quando eu dava curso de redação empresarial criativa. Inclusive, mais de uma vez ouvi isso. Era assim: o executivo mandava a secretária fazer o curso, porque ela precisava aprender a escrever. Eu, formado em propaganda, com uma boa base em marketing, entendia que a comunicação no ambiente corporativo ainda assim era feita de pessoas. É só você pensar que, quando as pessoas falam umas com as outras, por mais que seja no papel timbrado da empresa, não é a empresa que está falando, são as pessoas. Então, essa linguagem pode ser mais gostosa, mais afetiva, mais bonita. Não estou falando de fazer poesia, de escrever romance, nada disso, mas essa linguagem pode ser mais suave, não precisa dessa dureza toda, que é bastante característica de ambientes empresariais.

A secretária chegava, aprendia algumas coisas, e no dia seguinte ela voltava, dizendo: “olha, Rubens, sinto muito, mas o meu chefe não aceitou que eu escrevesse desse jeito. Ele é o famoso ‘venho por intermédio desta solicitar a vossa senhoria’”.

Então não adiantou nada você fazer um curso de redação empresarial criativa se você não pode criar, se você tem que usar aquilo que já existe há 300 anos. E isso tem a ver com o problema do uso de um paradigma, de um modelo batido. E o paradigma tende a levar à morte, porque mata a comunicação.

Um exemplo de paradigma. Vou dar dois. Aqui vai o primeiro. Um sujeito está dirigindo por uma estrada da Califórnia e de repente vem um carro em sua direção, dirigido por uma mulher. A certa altura, a mulher bota a cabeça para fora do carro e grita “porco!”. Ele não tem dúvida: foi chamado de machista. Afinal, era uma mulher dirigindo. Imagine se ela fosse negra? Pior ainda. Ele pensou “como estou dirigindo aqui e vem essa doida me chamar de porco?” Não teve dúvida, botou a cabeça para fora e gritou “vaca!”, acabando por atropelar um porco que estava ali na frente.

A mulher estava fazendo literatura, dando uma informação rápida para ele, uma única palavra. Seja inteligente, entenda, estou dizendo alguma coisa, prestando um serviço, mas você não conseguiu fazer isso. Você teve que atropelar o porco para, depois, entender que aquilo que eu estava fazendo era serviço. Verbal, não escrito, mas era.

O outro exemplo é o que a gente vê lá em Brasília. O nobre deputado é um cafajeste, sem vergonha e ladrão. Mas o que é interessante é o nobre. Sendo nobre, o que vier depois vale tudo.

Então, acho que não pode existir engessamento, senão você perde autenticidade. Do contrário, você fala como um robô, e não como um ser humano. Então, o ideal é não ter nem o rigor da academia dos críticos, nem o rigor do padre ou do pastor falando a partir de doutrinas rígidas, e nem uma irresponsabilidade de uma linguagem vazia, que não conduz a nada, que não acrescenta, que não tem conteúdo. Tem que ter um conteúdo muito bom para poder sair da dureza da academia e fazer uma outra coisa tão boa quanto, mas em uma outra linguagem. Isso é essencial nesse caso.

A questão é sempre essa. Está adequado? Esse é o critério. Senão, você também cai no problema do empobrecimento. Você não incorpora novos elementos da comunicação à cultura. Você continua fazendo aquela criação elitista que discrimina grupos, embora agrade aos críticos literários; mas eu não sei, é para isso que a gente escreve?

E aí, então, a gente pergunta: a quem interessa uma literatura elitista? Me parece que ao poder, que não gosta de gente bem informada, porque a literatura elitista fica só com a elite. A elite está no poder. Não saindo de lá, para ela, é o que ela mais quer.

Daí eu admiro muito o Joelmir Beting, que fez um trabalho fantástico como jornalista, colunista do Estadão e mais 32 jornais pelo Brasil, e comentarista de economia no Jornal Nacional e Jornal da Globo. Ele pegava o economês e dizia que ele tinha uma missão: traduzir o economês para que a dona de casa conseguisse entender o que ele estava falando. Só que o ministro também o convidava para conversar sobre economia. Olha que maravilha. A dona de casa entendeu, porque ele usou uma linguagem, se você pensar, que no final das contas é universal. E o ministro também entendeu. Então eles conversavam sem problema nenhum. Isso se chama competência.

Qual é o critério adotado pelo crítico? Acho que precisamos questionar um pouquinho. Ele se justifica? Então, acho que, para finalizar, é sempre uma questão de você aproveitar o que há de positivo no rigor dos críticos e o que há de positivo numa linguagem mais contemporânea. Somadas as duas coisas, teremos um samba muito bom e uma criação literária interessante e produtiva.

 

NÃO PERCA, NA PRÓXIMA SEMANA, a pergunta de João Gabriel Paulsen:

 

João Gabriel Paulsen skate

 

 

 

Olá, Rubens. Eu tenho uma certa dificuldade em criar diálogos. Eu sei que nem todo diálogo natural é eficiente no texto. Às vezes a coisa fica como se fosse um apêndice, meio deslocado. Então, eu gostaria de saber a respeito das suas dicas para criar diálogos verossímeis e que sejam também eficientes, que se insiram bem nas cenas e no enredo.

 

 

 

 

 

O Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa – Episódio 2 fica por aqui. E você? Gostou da resposta do Rubens Marchioni à pergunta de nossa querida Wlange Keindé? Comente aí abaixo, dizendo-nos o que achou.

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