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A jornalista Thais Rosa (parceira da Mundo Escrito) entrevistou o escritor Caio Evangelista no dia 4 de junho, dia do lançamento de seu livro intitulado “Os Negos do Outro Lado”.

Nessa entrevista, falamos de literatura, de racismo, das possíveis novas narrativas e dos desafios da atual geração de escritores. A prosa atravessa as margens do realismo fantástico e revela algumas nuances da dura realidade brasileira em relação à literatura.

Assista aos vídeos abaixo (ou em nosso canal do Youtube) e leia a transcrição dessa conversa que foi bem recheada com temas que não se esgotam e que são sempre bem-vindos nos diálogos com a Mundo Escrito.

 

– INÍCIO DA ENTREVISTA –

 

Transcrição do primeiro vídeo (conheça nosso Serviço de Transcrição):

Entrevista com Caio Evangelista sobre o livro “Os negos do outro lado” – Parte 1

 

Thais Rosa: Olá! Bem-vindo, Caio Evangelista. Tudo bem?

Caio Evangelista: Tudo bem? Muito obrigado pelo convite! É um prazer estar aqui, Thais.

Thais Rosa: O prazer é nosso. Muito bom receber você aqui na Mundo Escrito. Nós estamos cada vez mais entrevistando essa atual geração de escritores que continua produzindo textos com resiliência, que continua mantendo vivo o movimento cultural aqui no nosso país, levantando reflexões. E a Mundo Escrito, cada vez mais, acredita nessa importância de dar espaço e visibilidade, de divulgar o trabalho dos escritores brasileiros. E por isso, para nós, é um grande prazer ter você aqui conosco.

O Caio Evangelista tem uma trajetória já muito bem consolidada no teatro brasileiro, mas, hoje, o nosso foco é a literatura mesmo. Vamos falar de questões literárias, especialmente do próximo livro que vai ser lançado agora, “Os Negos do Outro Lado”. Então, Caio, na primeira pergunta eu já vou pegar o gancho do título: quem são “Os Negos do Outro Lado”?

Caio Evangelista: Ai, ai, ai (risos)! Não é fácil, hein Thais? Dizem que o brasileiro é, antes de tudo, um forte. Nós, que trabalhamos com cultura, estamos nessa trilha. E a literatura ainda mais, num país onde poucas pessoas leem. A última declaração do ministro da economia foi que a literatura é basicamente para a classe média e acima. Isso não é verdade. Não estou criticando o ministro, só estou falando porque a minha realidade não foi essa e eu sempre estive aí no mundo dos livros, desde criança.

Quando você me pergunta quem são “Os Negos do Outro Lado”, isso tem logicamente um recorte direto com a questão da cor. Os “Negos” têm três significados. Os “Negos” – como os personagens que narram a história chamam aqueles que são pretos ou de cor retinta que moram do outro lado do rio. Como pode ser também aquelas pessoas que estão à margem, que vivem num outro campo que não o nosso. Então tem essa parte de analogia onde qualquer um pode se colocar, de uma outra sociedade. Então o livro dá margem para isso.

Mas, essencialmente, na minha infância eu via uma história dos meus avôs, das pessoas mais velhas que contavam, com muita sapiência, com humor ou destilando ignorâncias muitas vezes; às vezes inventando histórias sobre coisas que eram fantásticas e que aconteciam do outro lado. Eu nasci na região do Rio São Francisco, na Bahia. Sou ribeirinho. E do outro lado a gente não podia ir, a gente não podia saber. Então, a minha imaginação vivia sempre solta, desde criança, para saber quem eram os “Negos”. E aí depois você vai pesquisando, pesquisando… Mas era um agrupamento de pessoas. Não era propriamente um quilombo, mas era uma associação de pessoas, de pescadores negros que não poderiam se misturar com os descendentes de europeus que moravam do outro lado do rio.

Thais Rosa: Caio, você falou do Rio São Francisco, que é muito presente no livro e é um rio tão amado por nós brasileiros e, também, tão cheio de dramas e que testemunha tantas desigualdades. Como que é a presença do rio no texto? O rio se torna quase um personagem, um divisor de águas, de margens… Como é que se deu a escolha desse ambiente em que se passa a história?

Caio Evangelista: Primeiro, pelo fato de eu ter nascido ali naquela região que povoa a minha imaginação, que a minha mente abarca. É o rio que diferencia, no Nordeste, daquela população que vive distante de onde não tem água.

O Mário de Andrade diz uma coisa que a Maria Betânia recita em um dos poemas, o que ela fez magistralmente. Ela diz assim: “Perto de água, tudo é feliz”. E quando a água se distancia, se distancia o alimento, se distancia a alegria. Então, no primeiro capítulo eu já falo da alegria que eram os banhos, os peixes, os animais, as aves que estão em volta desse rio que é o único rio genuinamente brasileiro, porque nasce e desaparece em águas brasileiras, povoa esse imaginário desde Minas Gerais, banha o resto do Nordeste e faz ali, na região onde eu nasci, o maior lago artificial do mundo, que é o Lago de Sobradinho.

Eu sou da cidade de Remanso, que foi uma cidade que cresceu e que tem ali as suas belezas. Seja porque a gente deve amar a nossa terra, que a gente percebe belezas que talvez outros não percebam, mas, essencialmente, porque era bonito mesmo o contato com a natureza. Eu chegava a imaginar a seca do Nordeste como uma coisa distante. A convivência que eu tinha era com o verde, o animal, o pássaro, o peixe. Era muita vida.

Depois que eu cresci um pouquinho foi que veio o entendimento de caatinga, de Nordeste. Eu achava estranho. Falava assim: “como é que eu posso pertencer a essa região, se o meu contato é outro?” Aí você vai entendendo a geografia. Agora, o Rio São Francisco aparece por três vezes nos meus três livros exatamente porque ele é muito importante, porque é o rio onde você se banha. A palavra “rio” leva a gente a se banhar, a mergulhar. Da mesma forma que a gente pode mergulhar nas águas propriamente ditas, a gente pode mergulhar em um livro, uma história. Então eu amo demais. E ali tem muito essa coisa da fantasia, do folclore brasileiro. Por exemplo, eu escolhi “Nego”, porque também a gente tem a figura do Nego D’água, aquele que engravida as meninas, aquele que morde o peixe, aquele que assombra os pescadores, que vira as canoas. E aí tem muita imaginação para a gente alinhavar no texto da história.

Thais Rosa: Quando eu vi que seu livro era de literatura mágica, fantástica, eu achei fascinante isso. E fiquei pensando que na literatura mundial a gente tem o García Márquez, que usa muito esse recurso. No cinema, “Labirinto do Fauno”, por exemplo, mostra que às vezes há uma realidade tão dura, tão totalitária, tão bruta, que precisa do realismo mágico e fantástico para dar conta dessa realidade. Eu não sei se foi por isso que você escolheu também esse tipo de texto para lidar com questões tão duras quanto o racismo. Eu queria que você falasse um pouquinho disso, sobre a questão de usar a literatura como um instrumento para levantar essas questões como o racismo, e onde que dói mais, ao tocar esse tema.

Caio Evangelista: Então, quando você olha para mim, eu sou um brasileiro que, para alguns, eu sou negro e, para outros eu sou “não negro”. Certamente eu não posso dizer que sou branco. Isso tem causado uma discussão muito… a nós próprios é difícil a gente se reconhecer. Como é que a gente se reconhece? E aí veio essa história do lugar de fala, né? Por exemplo, quando eu escrevi o texto, teve uma primeira pessoa que leu e disse que eu não poderia escrever esse texto porque eu não era negro. Quem poderia escrever seria uma pessoa que fosse negra. Aí foi um pau danado. Eu falei: “não, eu posso escrever, sim, sobre aquilo que eu testemunhei e aquilo que a minha fantasia abarca, sobre aquilo que eu fantasio.” Essa discussão dessa polaridade da sociedade brasileira, ou você está aqui ou você está lá e não existe outro caminho possível… “Não existe” parece que é a filosofia… Nós estamos mergulhando num mar de ignorâncias. Um “rio” separa essas duas categorias de pessoa. O brasileiro hoje está assim, ou você está ideologicamente nesse campo ou no outro; mesmo que você não seja, você vai ser tachado. É Grêmio e Internacional ou é Palmeiras e Corinthians ou é Flamengo e Vasco, não existe outra possibilidade.

Thais Rosa: É que se perde algo complexo que está no ser humano, no debate, que não é branco ou preto. É toda essa gama de cores que está no meio.

Caio Evangelista: Exatamente. Quando os dados dizem que a maior parte da população é negra, eles estão contando não só pessoas de cor retinta. Eu me recordo de coisas da minha infância, quando as pessoas falavam das pessoas do outro lado e, muitas vezes, tinha um ódio colocado do mesmo jeito que está colocado hoje. A questão da disputa política, da ideologia política, se é que a gente pode falar que existe ideologia…

Mas existia essa ignorância, só por pertencer ao outro lado. Ou só por ter ido ao outro lado. Como se fosse uma maldição. As pessoas não achavam aquelas pessoas feias, propriamente ditas. Tanto que depois de um tempo elas começam a se miscigenar, a casar. Alguns se casavam – e isso aparece no livro. Tem personagens que eles negam: “Não, eu não casei com ninguém do outro lado. Essa pessoa tem cabelo liso, então essa pessoa não é do outro lado”. Então existe um ódio social de onde você pertence. Eu acho que não é bem a cor. De repente você olha uma mulher negra e você acha lindíssima; você olha uma mulher branca e você acha lindíssima; um homem ou quem quer que seja. Eu acho que não é por uma questão estética, eu acho que é um lugar social, de pertencimento. Você é desse lado ou, então, você é tudo o que possa existir de ruim.

No livro eu separo: o outro lado é a noite e o lado de cá é o dia. A claridade é tudo o que é bom, tudo o que possa representar a luz e, do outro lado, é a escuridão. Depois a gente vai lendo e, quando você mergulha no livro, vai percebendo que é muito bom conhecer a noite! E que muitos fecham suas portas durante a noite, mas a vida deles continua à noite e eles discutem durante o dia o que aconteceu à noite. Tem esse vai e vem que é a literatura fantástica.

Você citou Gabriel García Márquez, que é o meu escritor preferido, ele é o mestre disso. Ele diz assim: “Tudo o que a imaginação povoa, existe, é real”. Então, se a minha mente criou, é real. Existe. Eu criei, tal qual Deus criou todas as coisas. “Deus viu que a luz era boa e criou a luz. E separou a luz das trevas”. O trabalho do autor, do criador, é mais ou menos assim nesse papel de Gênesis. Você cria, passa pela complexidade do cérebro humano de quem está lendo e passa a existir.

Muitos leitores acompanham um personagem pelo resto da vida. Tem mulheres que adotaram a Blanche DuBois [personagem de “Um Bonde Chamado Desejo”, de Tennessee Williams] e vivem com ela. Então é isso, eu acho que o caminho do realismo fantástico é uma coisa próxima dos jovens também. E eu também não tinha autoridade para falar de uma maneira seca e dura, apenas dos aspectos históricos. Isso já tinha sido feito por vários historiadores, pessoas que têm um estudo sério e importante já tinham tratado desse tema. O que eu queria era trazer a complexidade daqueles personagens exatamente quando eles “se balançam”. Eu diria que o melhor do meu livro são os personagens, quando eles se questionam. Eles são complexos.

 

Transcrição do segundo vídeo:

 

Entrevista com Caio Evangelista sobre o livro “Os negos do outro lado” – Parte 2

 

Thais Rosa: Caio, entrando nisso que a gente estava falando, como é que podemos usar a arte – você que vem do teatro –, usar a literatura para discutir e levantar essas questões do ódio, diminuir esse ódio, essa intolerância? Como a gente pode dar luz à diversidade, às diferenças, aprender com elas, com essa beleza que é as pessoas serem diferentes e complexas e interessantes?

Caio Evangelista: Pois é, isso está mais vivo do que nunca. Eu, particularmente, acho que precisamos viver um novo Humanismo. Não aquele Humanismo do século XVIII, após a Revolução Francesa, não só esse. Ele deve caminhar junto, mas em um novo momento em que o homem começa a perceber na ciência o respeito aos animais, o respeito à diversidade, o respeito a quem nasceu diferente. Porque não é uma opção. Estamos falando aí da questão da sexualidade.

O livro traz negros que têm problemas de pele, que são albinos. É uma curva que a natureza faz. Não é opção da pessoa. Não é porque pegou sol demais. Isso pode acontecer em qualquer lugar. Exatamente por isso aconteceu lá no lugar onde o sol brilha muitas horas durante o dia.

A questão do negro especialmente tem duas vertentes. Nós temos a vertente que quer trabalhar o Humanismo, que quer conversar propondo à sociedade um contrato social, que é a linha que eu acho que temos que fazer. E tem a outra linha que diz que os negros têm que voltar para a África, que tem que romper tudo. Eu acho que esse caminho não é possível.

É por isso que, no livro, eu vou mais pelo caminho da humanidade. Os personagens vão se encontrando na sua humanidade, vão se encontrando em harmonia com a natureza. É um convite para as pessoas se harmonizarem com o que há, para elas viverem melhor. Porque a natureza está cheia de coisas bonitas, entende? Mas também não trabalhar com maniqueísmos. Quando você lê o livro, percebe que não é assim. Não é porque sendo do outro lado que essas pessoas não cometem algum crime, não cometem algum erro. Não é porque está do lado de cá que são totalmente ruins, sabe?

Eu acho que. na literatura, o bom é isso. Ninguém é mau o tempo inteiro e ninguém é tão bom o tempo inteiro. Então, no livro, ninguém procure anjos ou demônios, porque isso não vai existir. Vai encontrar gente humana, complexa, com problemas, com dualidades. E o Raimundo é o narrador; ele conta a história a partir do que ele ouviu de dois velhos, a Redonda e o Dimas. Ele acrescenta o ponto de vista dele, e ele é um ser totalmente complexo. Ele viveu mais de duzentos anos e, depois dos quarenta, ele se transforma em mulher e volta a ser homem.

Essa coisa da diversidade, eu quis brincar mesmo. Isso que eu estou falando não é novo. Porque no Nordeste existe essa coisa do homem que virou lobo, da mulher que virou homem e por aí vai. Mas, às vezes, isso não estava alinhavado. O que eu acho que é novo é alinhavar tudo isso em uma história. E o “Nego” aparece de várias maneiras. Mas aí, para contextualizar o que você me perguntou, eu caminho por isso, pela questão da humanidade onde nós temos que respeitar. Simplesmente respeitar. Não adianta gostar ou desgostar; tem que respeitar a partir do que o contrato social diz, as leis dizem. “Ah, eu não gosto de negro”. Problema seu, meu querido. “Ah, eu não gosto de gay, de lésbica”. Problema seu. Respeite. “Ah, eu não gosto de animais”. Respeite. Ponto. E aí a gente vai vivendo.

Agora, quando as pessoas, por não gostar, passam a desrespeitar, aí a gente tem um problema. Porque aí começa o embate. Aí começa a luta de classe de novo. Aí vem toda aquela teoria. Aí começa um ser comunista e o outro não sei como se chama (risos). Mas há esse caminho possível, da gente se encontrar como raça humana, como o animal que tem que evoluir. E a tecnologia, a inteligência artificial está aí. Existe um novo momento para a gente perceber os animais. O homem judiava muito dos animais. Eu lembro da minha infância, que era muito cruel o tratamento que o homem dava aos animais.

Eu acho que a gente caminha sempre para melhor. Agora, logicamente, na sociedade nos espanta ver alguns comportamentos. E isso tem que ser freado, logicamente. A partir da ciência, a partir do contrato social que é a lei. Acho que a lei vem para organizar a sociedade. Não dá para esperar a minha ética, a minha moral. Não precisa esperar. Acho que tem algo que organiza a sociedade. E durante mais de um século e meio, em que eu conto a história, o lugar onde ele ficava perdido, exatamente porque não tinha lei. O crime acontecia e depois prescrevia. O que dava conta era a moral, era a religião. E isso não resolve mais na sociedade.

Thais Rosa: Vamos falar um pouquinho de literatura. Quais foram suas referências na literatura brasileira e na literatura mundial? Quais são os livros que continuam sendo uma inspiração para você, no seu trabalho?

Caio Evangelista: No processo de narração, o Walter Benjamin é um pai porque, quando eu tive o primeiro contato nessa história de como narrar, de qual é o lugar do narrador, que é uma herança, que é um tesouro que você deixa… É o caminho possível, porque a literatura é tão difícil para a gente, não é? Você escreve o livro sem a menor perspectiva de quanto pode vender, independentemente se é bom ou ruim. Então, essa coisa da herança que o Walter Benjamin ensina, sobre essa coisa do tesouro, desse saber antropológico, é muito importante.

Eu bebo muito da poesia do Castro Alves. Acho que o “Navio Negreiro” é o que consegue me colocar nesse terror do que era a situação, do que foi o tráfico através dos navios negreiros. Eu gosto da poesia do Caetano Veloso, exatamente porque ela me oferece essa dualidade, ou é ou não é… “Onde queres revolver, sou coqueiro. Onde queres dinheiro, sou paixão”; essa coisa da antítese o tempo inteiro. Essa brincadeira é muito boa.

O Guimarães Rosa foi um autor que eu li muito e que eu me identifiquei. Quando eu leio Guimarães Rosa, eu acho que estou no Nordeste. Ele fala de uma região ali de Minas, que são sertões, que pega uma parte de Goiás, Bahia e Minas Gerais. Eu acho que ele foi muito corajoso, o Guimarães Rosa, para escrever sobre um Brasil que talvez não gerasse interesse.

Euclides da Cunha, a mesma coisa. E o Jorge Amado. Ele me oferece uma coisa que eu tento trazer nos meus livros, que é essa coisa da compaixão dos personagens. O amor do Jorge Amado pelas prostitutas, pelos loucos, pelos bêbados, pelos que estão à margem; eu acho que é isso que interessa em nossa sociedade. Escrever sobre reis, rainhas, pessoas bem-nascidas… já tivemos uma literatura romântica para fazer isso. Já temos aí os baluartes da literatura. Mas eu acho que quando chega no Modernismo, que você tem o Jorge Amado colocando um Vadinho como personagem principal, eu acho que aí é muito interessante.

O Bertolt Brecht, que foi um dramaturgo e teórico alemão, ele fez muito bem isso. Ele reescreveu algumas tragédias gregas sob o ponto de vista de uma nova sociedade. Então, esses escritores de que eu falei são a minha fonte. Pode ser que eu tenha esquecido de citar alguns. Gabriel García Márquez, que foi o escritor que eu li muito. O Hermann Hesse, eu gosto muito. Eu li bastante. E eu acho que a gente tem que ler sobre o Brasil para conhecer o Brasil. Eu acho que eu conheço o Brasil mais pela literatura que propriamente indo ao lugar. Muitas vezes eu vou – nas minhas viagens ao Brasil – eu vou para conhecer aquilo que os escritores já anunciavam em seus livros. Eu acho isso fantástico.

Thais Rosa: Caio, venha me visitar. Estou super perto da cidade do Érico Veríssimo, a uma hora e meia! Então os livros dele, “O Tempo e o Vento”, trazem esse cenário aqui do pampa, do Rio Grande do Sul. Quando você quiser vir, a gente faz aqui um “tour literário” (risos)

Caio Evangelista: Ai, que maravilha! Eu estive aí. Eu fui a Porto Alegre já, algumas vezes. Fui em Gramado. Fiz um caminho mais turístico. Mas eu quero fazer as serras… Gostei muito do cinema, também.

Thais Rosa: Tem até o Vitor Ramil, que é um compositor gaúcho; ele fala muito da estética do frio, que a gente tem uma semelhança com o Uruguai e a Argentina muito forte. Aqui eu estou a duas horas do Uruguai, a umas quatro horas da Argentina. Então tem também essa proximidade com Borges, Cortázar, todos esses escritores da literatura latino-americana, dessa parte da América Latina.

Caio Evangelista: Com certeza! E aí vocês são bastante resistentes, continuam. A gente percebe que tem uma cena do rock, da cultura, do cinema, da literatura. Eu acho isso muito importante, esse recorte. Eu acho que o que faz o Brasil é justamente essa multiplicidade. É quase um continente o Brasil, não é? Vai daí até… você ir medindo e acompanhando os autores, os artistas, como é que a cultura se manifesta até o Norte… É um continente. E é fácil, fácil, você estar em Punta del Este e encontrar um quarteirão da praia inteiro só de pessoas do Rio Grande do Sul. Todo mundo toma chimarrão, você não sabe quem é do Uruguai e quem é do Rio Grande do Sul.

Thais Rosa: É maravilhosa essa diversidade cultural. A gente aprende muito com o Brasil, com as diferentes culturas. E a próxima pergunta é sobre essa questão dos novos escritores. Porque na Mundo Escrito está sempre em contato com esses jovens talentosos que lutam muito para conseguir publicar, para viver da literatura, para ser escritor no Brasil. É difícil ter espaço. Quais são os principais desafios que os novos escritores enfrentam? E, também, muitos falam da dificuldade de que, além de serem escritores, eles têm que se desdobrar em muitos papéis. Por exemplo, entender de marketing digital, fazer contatos, fazer relações públicas… Qual é a sua visão sobre isso?

Caio Evangelista: Eu acho que a literatura no Brasil é bem difícil. Para um país continental com essa proporção, a gente fica muito à mercê da mídia. Eu acho que tem uma responsabilidade, e aqui eu parabenizo o trabalho de vocês, que é de dar foco para esse trabalho de quem está construindo algo que não seja necessariamente ou tão somente comercial. Não tenho nada contra trabalhos que tenham uma campanha comercial. Se eu assim pudesse, também o faria.

Mas eu acho que, a começar das universidades, dos cursinhos e bancas de vestibular que indicam os clássicos, eu acho que se devia, em algumas cidades, em algumas regiões, incentivar os novos escritores. Porque nós temos muitos bons escritores, muita gente produzindo coisa bacana e que a gente não conhece. Que a gente não tem o tempo, não é? Porque o celular já ocupa muito o nosso tempo. Nós temos a Netflix, a exemplo de outras, e aí a literatura…

Nós temos a globalização do mercado que traz coisas de fora. A gente não pode dizer que o jovem não quer ler. Vendem milhões de livros do bruxinho inglês e de toda essa literatura fantasiosa que vem de fora. Vende milhões. Então, eu não posso dizer que o jovem não lê. Eu acho que ele não é despertado para esse interesse. E isso impacta na produção de novos escritores. Imagine um garoto com quinze, dezesseis anos, ou uma menina que resolve falar para os pais: “Olha, vou ser escritor(a). Vou escrever”. É chocante, porque a gente acha que a pessoa vai morrer de fome mesmo. A gente também imagina.

É um mercado muito difícil. Se a arte em geral já é difícil por si só, eu acho que essa é uma das mais difíceis. Mas, também, é a mais elegante, é a mais charmosa, não é?

Nada como o livro. O livro eletrônico não foi feito para você comprar e consumir aquilo. Aquilo é para você, mas, se estiver em viagem, não pode carregar o livro. O bom do livro [físico], que gera emoção, é você o ter em suas mãos. É você ler o livro e, depois, ter ele ali guardadinho… Você olha, você tem uma afetividade, você pode voltar a lê-lo, você pode dar para alguém ou pode guardar por alguns anos. E aqueles personagens, aquela história, no instante em que você lê, eles estão presentes. Uma sociedade inclusive precisa de novos escritores. A gente precisa motivar os jovens a escrever. E com uma nova linguagem.

Eu fico imaginando o Machado de Assis, que eu nem citei. Eu li muito e eu entendo, eu gosto. Mas acredito que o meu sobrinho já não consiga mais ler Machado de Assis. Porque, para ele, já é muito distante.

É preciso que nasça um novo Machado de Assis que conte e fale as coisas que ele falava, mas, de um outro modo. A sociedade precisa de novos escritores. Porque o escritor é a criação.

 

Transcrição do terceiro vídeo:

 

Entrevista com Caio Evangelista sobre o livro “Os negos do outro lado” – Parte 3

 

Thais Rosa: Você tocou num ponto que eu já ia perguntar. Como essa nova geração, essas novas tecnologias e as redes sociais estão transformando a produção dos textos? Temos visto que os textos estão cada vez mais curtos, mais coloquiais, com muito uso de gírias, com uma linguagem que às vezes é até difícil a gente entender, próprias de certos grupos, da forma como eles estão se comunicando. Isso estaria formando um novo escritor, um novo leitor? Ou, na sua opinião, sempre vai ter um espaço para os clássicos? O cânone, o clássico é intocável? Ou haveria uma tendência de se construir uma nova narrativa?

Caio Evangelista: Eu acho que uma nova narrativa é praticamente impossível que não venha. Eu acho que ela já está aí. Eu acho que daqui a pouco a gente percebe. É mais ou menos igual à história da criptomoeda. Eu lembro que há um ano, dois anos, a gente achava: “O que é isso? Como assim? É coisa de criança brincando com alguma coisa do mercado chinês.” E hoje ela é mais realidade.

Escrever de uma maneira diferente, que não vá obedecer a essas regras todas da ABNT, é um caminho que acho que fatalmente nós vamos testemunhar. E a inteligência artificial está aí, ela transforma muito rapidamente, porque é capaz de armazenar dados que o ser humano não consegue. Nós fazemos várias coisas. Mas eles não criam como a gente pode criar. Não tem essa coisa do feeling, essa coisa que a gente chama de alma, não é? A alma do autor.

O Walter Benjamin também fala da aura da obra de arte. Esse estado de arte, só o ser humano tem. Então, vai ser necessário que venham novos escritores que adaptem, que consigam conversar nessa linguagem rápida, mais econômica e que eu não diria que é menos inteligente. Eu acho superinteligente, eu percebo pessoas acompanhando de uma maneira muito rápida o raciocínio das coisas, de perceber, de sentir as pessoas. Eu não acredito que a juventude não tenha sensibilidade, como alguns dizem. Eu sou um daqueles que acreditam sempre que nós estamos evoluindo para o melhor. O que é difícil, às vezes, é a gente aceitar o novo.

Agora, se você me pergunta: “O clássico vai desaparecer?” Não. É igual ao teatro. Quando você lê a literatura dramática, você percebe que nos anos vinte falava-se da crise do teatro. Quando veio a iluminação elétrica, entraram em pânico na Europa, pois isso iria acabar com o teatro. Não acabou. Quando vieram as projeções, o cinema, isso iria acabar com o teatro. Não acabou. Então. quando uma arte submerge, quando ela passa a fazer parte da retina humana, ela está ali, está o tempo inteiro. Vai, volta, adapta-se às tecnologias, mas não desaparece. Acho que a literatura, o livro, o sabor de folhear um livro, isso continua. Mas, que nós temos um novo mercado, um novo meio de produção e novos escritores falando com uma linguagem diferente, isso já temos. A gente só vai, daqui a pouco, esperar e ver aí: “Olha o livro tal, que fala por meio disso”, de uma linguagem diferente, que está criando aí grandes celeumas. E a gente vai estar aqui discutindo: “É bom”, “Mas não é bom”… Eu acho tudo bom.

Thais Rosa: A gente estava falando dessa delícia que é a literatura, de estar em contato com a literatura, com o bom teatro. Para você, como foi durante a pandemia? Porque eu vejo que nesse período de isolamento, de tantos desafios, pelo menos para mim, a literatura foi uma ótima companheira. E não é só uma forma de evasão da realidade, assim: “Ah, vou sair da realidade, vou lá para sei lá qual século, porque está insuportável a realidade do agora”. Não é isso. É também o acesso a diferentes realidades. É uma maneira de expandir a consciência, de compreender outros modus vivendi. Então, eu queria saber de você como é que foi, quais foram as suas leituras da pandemia? Como a literatura te ajudou nesse período e pode ajudar muitas outras pessoas também?

Caio Evangelista: A arte nos salvou. Aliás, ela vem nos segurando. Imagina o que seria a pandemia sem a música, sem um vídeo, um filme em casa, sem um livro, sem algo para ler. Para mim, a pandemia foi um momento de perceber como o ser humano estava. Ele estava não, ele está muito volúvel, para viver muito rapidamente um monte de coisas, mas não estava vivendo a vida propriamente dita.

Eu não vou dizer aqui que a pandemia foi boa, longe de mim dizer isso! Estou dizendo, nesse sentido, que algumas pessoas se encontraram, como você está falando. Essa coisa da expansão da consciência foi muito importante. Eu, por exemplo, concluí o livro. O meu método de escrever é assim: eu escrevo tudo, não obedeço à pontuação, não obedeço a nada. Vai quase que fisicamente – o corpo e eu – sendo colocado ali. Depois eu faço uma leitura e, de novo, de novo e de novo e de novo. E aí chega um momento em que você diz assim: “Ah, deixa aí. Deixa maturar.” Como se fosse um bolo. Deixa maturar essa massa. E você vai deixando. Aí passa um mês, passa outro, você vai fazendo outras coisas. A pandemia foi o momento em que eu tirei o extrato; que eu colhi o vinho. E, nesse sentido, acho que a literatura oferece mais.

Quem lê um livro conhece mais pessoas do que quem não leu; viaja por mais lugares do que quem não leu. Além de ser um treinamento para a mente, para a concentração, para a inteligência. Eu li Yuval Noah Harari, que foi um livro que mexeu muito comigo. Sobretudo “Homo Deus”, em que ele fala exatamente disso, que o homem caminha para uma nova religião, que é o Humanismo. Ele diz isso, mas eu já tinha pensado; tudo bem eu não ter escrito (risos). Pois, como já falei, penso assim, especialmente no capítulo em que ele fala dos animais. O homem teve uma revolução agrícola, então ele mudou sua busca pelo alimento, é tudo em torno do alimento.

E a relação com os animais é uma relação de crueldade, de sacrificar, inclusive pelo vínculo da religião. Nessa percepção, eu volto a dizer por que acho que é importante. Eu disse lá atrás, mas eu volto a dizer. O homem precisa observar nos animais uma relação melhor com a natureza. E isso está lá no meu livro também. Nós temos o cachorrinho Lorde e a égua Elefanta, que não têm esse problema com a noite. Eles veem melhor à noite. Eles se conectam com o espaço e com as pessoas. Como é que a gente vai dizer que eles não têm a sua sapiência, a sua inteligência? Por que é que a gente se coloca como sendo melhores? E aí, quando vierem os supercomputadores, muitos de nós também ficarão a um terceiro plano, como uma raça de humanos que não servem para nada. Porque o nosso trabalho será feito muito mais rapidamente, por um robô. E a tecnologia vai dar muito mais eficiência e rapidez para algumas coisas, inclusive no campo da medicina e da saúde, o que é uma coisa importante, coisa que muitos homens não conseguiram fazer.

E aí eu acho que o artista, o escritor, aquele que cria, não será substituído. Porque nós precisamos de coisas, e a arte é a representação de como o homem se espelha na sociedade; e isso não desaparece nunca, porque temos a necessidade de nos vermos, de nos espelharmos. E a arte não é quando uma pessoa faz um traço bem, é quando aquele traço significa algo além, ou algo que ninguém disse ainda.

Então, esse lugar da arte, essa aura, ela não desaparece. Porque ela é próxima dessa coisa religiosa que diz que: “Deus criou todas as coisas”, criou todo o universo, todos nós e tudo o que existe. Ele é a natureza. Então, quando eu crio algo, quando eu crio um personagem, quando eu crio uma poesia, uma música, quando eu faço um filme, uma cena, quando eu pinto alguma coisa, quando desenho alguma coisa, eu estou sendo um pequeno deus. Ou o deus daquela coisa. Então não tem como desaparecer, porque você é o criador. O criador não desaparece.

Thais Rosa: Caio, muito obrigada pela conversa, que foi uma delícia. Eu já estava interessada em ler “Os Negos do Outro Lado”, agora estou interessadíssima. Vamos mantendo sempre essa chama acesa da literatura, da arte, da aura, do encantamento. Para que não se perca isso que é o mais importante na vida: o encantamento.

Caio Evangelista: Exato. Eu que agradeço. Muitíssimo obrigado!

 

– FIM DA ENTREVISTA –

Esperamos que você tenha gostado da nossa entrevista com Caio Evangelista. Aproveite as outras entrevistas que fizemos com outros escritores!

 

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