Trazemos hoje o último episódio da série Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa – Episódio 9. Ficamos muito felizes com a execução deste projeto, um dos mais lindos já realizados por nossa equipe e aqui publicados.
A série contou com a participação de 8 escritores profissionais, vencedores de importantes prêmios de literatura (como o Prêmio Sesc de Literatura, o Prêmio Jabuti, entre outros), todos com livros publicados e que continuam na ativa, em constante produção. São eles:
Episódio 1 (Fábio Shiva)
Episódio 2 (Wlange Keindé)
Episódio 3 (João Gabriel Paulsen)
Episódio 4 (Felipe Holloway)
Episódio 5 (Ricardo Labuto Gondim)
Episódio 6 (Paula Giannini)
Episódio 7 (Luisa Geisler)
O oitavo escritor é o Rubens Marchioni, autor do livro “Escrita Criativa, da ideia ao texto”, publicado pela Editora Contexto. Foi ele quem respondeu a todas as perguntas elaboradas pelos autores citados acima.
Agora, fechando a série Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa, Paula Giannini traz a última pergunta, bem oportuna para o momento histórico em que vivemos. Ela fala da produção literária durante a pandemia. E, por sua vez, Rubens Marchioni traz a sua última resposta, que segue abaixo, no vídeo.
A seguir, está a transcrição realizada e editada por nossa Equipe de Transcritores.
Pergunta de Paula Giannini
E agora, falando um pouco do nosso momento, a pergunta que fica nessa pandemia, de coronavírus, de quarentena, em um mundo onde a gente está vivendo tantas tristezas, com tantas mortes. O que você acha que vai acontecer com a literatura nesse momento de quarentena? Você acha que vão sair bons textos a partir daí? Ou a literatura não vai conseguir se igualar à tamanha dor, à tamanha distopia? O que você acha?
Resposta de Rubens Marchioni
Oi, Paula. Você me pergunta sobre a questão da literatura na pandemia. Então, estamos tentando entender o que está acontecendo. Tudo é muito novo. A gente já vê manifestações, no sentido de que vivemos em um mundo mais espiritualizado, por exemplo. Só que eu acho que não. Nós não estamos mais espiritualizados. Logo que foi decretada a quarentena, eu vi um vídeo no Face que dizia: olha, veja, agora os pais estão em casa conversando com seus filhos, convivendo com a família. Tem menos carros nas ruas, tem menos poluição, nós estamos agora em um mundo novo.
Acho que não é assim. O ser humano não acordou de manhã e pensou “agora eu quero ser mais espiritualizado”. Até porque, se ele pensar nisso, que ele vai ficar mais em casa para conviver com a família, precisa fazer algumas perguntas. O seu patrão também acha isso? Ele concorda? Por ele tudo bem? Porque pode ser que ele não pense assim.
Outra. Nos primeiros dias, tudo muito bom, gostoso e tal. Mas e quando acabar o assunto? E quando acabar o dinheiro para a comida e para pagar as contas? E quando bater o tédio e a consciência de que deixou de produzir, de ser útil? Como é que vai ficar essa espiritualização toda? Ela vai continuar?
Nós temos já uma sociedade pensada para viver sem ir ao supermercado, sem ir à farmácia, à padaria, à loja, ao banco, à escola e tudo mais? Não temos. O quadro não mudou. Eu estou aqui quebrando a cabeça, apanhando, inclusive, porque eu me esqueço de muitos detalhes. Eu não fui treinado para isso. Minha vida não era essa. Sempre agi com muita liberdade.
A sociedade, o mundo, já teve outras pandemias, e nenhuma pandemia transformou radicalmente o ser humano para ele se tornar um ser espiritualizado. Portanto, acho que não vai ser dessa vez.
A literatura, as músicas, as artes, tudo vai falar de dor, de sofrimento, e vai procurar consolar.
Agora, o que vai acontecer, e isso não tenha dúvida, é uma consequência natural. A literatura, as músicas, as artes, tudo vai falar de dor, de sofrimento, e vai procurar consolar. Vai ser sempre a lei e o amor, vai ser sempre a razão e a emoção. A busca pelo equilíbrio. Vai ser sempre uma abordagem olhando para a esperança, sem perder de vista também o pessimismo, porque nem sempre o pessimismo vai ser suficiente. Então, vai ter um movimento dialético. Você tem a pandemia; você tem, depois, a negação da pandemia, quando tudo isso acabar; e você tem uma síntese, que sim, são pessoas com comportamentos diferentes em alguma medida, mas sem essa mudança radical que algumas pessoas insistem em dizer que vai acontecer.
vai ter uma literatura que vai privilegiar muito mais os valores.
É uma esperança muito bonita. Eu lamento se eu estiver decepcionando alguém, mas o que eu penso é que não vai ser assim, não vai ser dessa vez. Agora, vai ter uma literatura que vai privilegiar muito mais os valores. Os valores da sociedade, porque quando você vem de uma experiência muito ruim, quando você vem de uma experiência, por exemplo, de passar fome, você valoriza muito mais o alimento que você tem. Valoriza. Você dá valor, você entende muito mais o valor da liberdade, o valor de ir e vir, o valor de ter as coisas, de encontrar as pessoas. A sociedade vai estar, sim, muito mais voltada para valores.
Vai ter uma literatura muito mais voltada, também, para a filosofia. Discutir a origem, o sentido da vida. Como é que a gente chegou a esse mundo e como é que estamos nessa situação lamentável, que é a pandemia? Quer dizer, para que serve a vida, afinal de contas? Como é a questão da nossa fragilidade neste momento? Por quais coisas vale a pena lutar?
Outra linha de literatura é aquela de que eu já havia falado, valorizando o CHA. Saber fazer, querer fazer, saber viver em um mundo pós-pandemia, saber o que é o mundo pós-pandemia, saber como viver nesse mundo pós-pandemia na prática, e querer viver nesse mundo pós-pandemia, com tudo aquilo que ele vai trazer, com tudo aquilo de exigência, com a falta de dinheiro, com a falta de trabalho, com a quebradeira, com todas as possibilidades de você dizer “bom, já que isso foi destruído, vou construir de novo, só que agora de um jeito diferente”. O que vai ser muito bom, vai ser muito bom nesse sentido. A gente vai perder muita coisa e vai poder olhar e dizer: “Pronto. Não tenho mais isso a que eu me apegava. Agora, então, estou livre para tomar outro caminho, fazer diferente, pensar diferente, agir diferente, falar diferente. Porque eu tenho uma situação que me leva para isso.”
E talvez a gente tenha também uma outra situação para finalizar, que é a do surgimento de um Paulo Coelho. O Paulo Coelho surgiu, meio resumindo, numa época em que o povo cristão estava bastante frustrado porque a igreja, sobretudo na América Latina, apostou muito na teologia da libertação, que era uma teologia que dizia o seguinte: “Nós vamos transformar a sociedade — e ela trabalhava bastante a partir de princípios marxistas —, nós vamos fazer com que essa sociedade não tenha mais pobres e oprimidos, que a justiça e a igualdade sejam restabelecidas.”
E as pessoas acreditaram muito nisso. Eu estava fazendo teologia na época, aqui pela arquidiocese de São Paulo, e eu preguei muito nesse sentido. Mas olha o que aconteceu. Eu morava na periferia, comunidade eclesial de base. Aí, um dia, nós estávamos, eu e um colega meu, também da teologia, numa reunião na casa de uma pessoa simples, na periferia, falando sobre essas questões. No meio da reunião, uma senhora se levanta e diz o seguinte: “olha, gente, eu vou embora, porque tudo isso que vocês estão dizendo eu vivo o dia inteiro. Eu não preciso que ninguém me fale sobre isso. Quando eu venho para uma reunião como essa, eu venho esperando um Deus que mostre outro caminho, que me faça sentir alguma outra coisa, que me dê um pouco de mística, um pouco de espiritualidade, que dê algo para a minha alma se acalmar, para ela entender que existe algo superior a tudo isso, e vocês não me dão isso.”
Foi um tapa na cara, porque, para mim e para o meu colega, era tudo muito fácil. Nós tínhamos uma casa paroquial enorme, muito bem equipada, com carro, cama, comida, roupa lavada, cada um com seu quarto, empregada fazendo tudo. Quando nós nos ordenássemos, nós teríamos emprego para o resto da vida, não teríamos problema com desemprego, e, se a gente quisesse estudar no exterior, não teríamos nenhum problema: Roma, Bélgica, Alemanha, era só escolher.
Então, ficava fácil ir lá esfregar na cara das pessoas simples: “olha, vocês são os miseráveis, vocês são, eu não sou. Mas vocês sofrem”. E as pessoas foram se desiludindo, porque a teologia da libertação não fez aquilo que prometeu.
O Paulo Coelho pegou esse vazio e escreveu coisas como “O Alquimista”, “O Diário de Um Mago”, tudo para dizer: “olha, esquece esse vazio. Faça o caminho até determinado lugar. Se não puder fisicamente, faça espiritualmente, e descubra o seguinte: você é mago. Você tem a magia dentro de você. Você pode transformar a sua vida. Não fique esperando que alguém transforme. Não fique esperando que alguém leve flores para você. Plante e regue o seu jardim, como disse o Shakespeare. Descubra os valores, o potencial que você tem. Você pode fazer essa alquimia”.
É claro, pega um povo desvalido, desesperado desse jeito, lança um livro, dois, entrega e diz: “olha, o caminho está aqui. Nem tudo está perdido. Aliás, tudo está muito ganho”. Este livro, que não recebeu boas críticas do ponto de vista literário, foi muitíssimo bem-aceito, vendeu muito bem, foi traduzido para o mundo inteiro. E o senhor Paulo Coelho, hoje, se eu não me engano, vive em um castelo na Suíça.
Será que vamos ter um Paulo Coelho pós-pandemia? Não sei, mas é possível.
Esta foi a série “Perguntas e Respostas Avançadas Sobre a Escrita Criativa”. Deixe nos comentários a sua opinião sobre os temas abordados e faça parte deste debate. Não deixe de acompanhar a Mundo Escrito e de ficar por dentro das próximas novidades. Até breve!