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Retornando com a série Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa – Episódio 5, trazemos hoje a pergunta de Ricardo Labuto Gondim e a respectiva resposta de Rubens Marchioni.

Se você ainda não viu os episódios anteriores da série, fique à vontade para acessá-los: Episódio 1 (Fábio Shiva), Episódio 2 (Wlange Keindé), Episódio 3 (João Gabriel Paulsen) e Episódio 4 (Felipe Holloway).

A razão da série se intitular “Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa” se deve ao fato de que todas as perguntas foram elaboradas por escritores profissionais e todas as respostas foram dadas por Rubens Marchioni, escritor expert no assunto Escrita Criativa, autor do livro Escrita Criativa – da ideia ao texto, publicado pela Editora Contexto.

Assista ao vídeo abaixo para acompanhar a pergunta do escritor Ricardo Labuto Gondim e a resposta de Rubens Marchioni. Após o vídeo, disponibilizaremos a transcrição do conteúdo, realizada e editada pela nossa Equipe de Transcritores.

 

 

Pergunta de Ricardo Labuto Gondim

 

Escrita Criativa - 5 [Ricardo Labuto Gondim]

 

“O apito do navio era como um lamento e cortou o crepúsculo que cobria a cidade”. Jorge Amado, Terras do Sem Fim. “Chamai-me Ismael”, Herman Melville, Moby Dick. “O céu sobre o porto tinha cor de televisão em um canal fora do ar”, William Gibson, Neuromancer. Rubens, o que você pensa sobre a primeira frase?

 

 

 

Resposta de Rubens Marchioni

 

Escrita Criativa - 5 [Rubens Marchioni]Vamos começar falando sobre a abertura, o início do texto. Eu vou um pouco adiante, começando pela propaganda. Na propaganda, a gente já sabe: o que decide se o leitor vai para dentro do texto, se você vai conseguir falar com ele e apresentar a sua proposta de venda é o título; é ele que decide. Assim disse o mestre David Ogilvy, papa da propaganda, e isso funciona sempre. Se você não mostra um benefício, se você não cria para ele uma expectativa, a chance de você ficar falando sozinho é muito grande.

Levando um passo adiante do título, é hora então de você prender mais um pouco a atenção, não falando da empresa, da marca do produto ou do serviço, mas falando dele. Por exemplo, “na hora de investir, você faz questão absoluta de segurança e rentabilidade”. Eu estou falando de você. Eu me preocupo com você, é você que importa. Eu quero que você sinta que alguém se preocupou com você, quero que você pense “epa, estão falando de mim. Eu quero saber o que vem pela frente”.

No segundo momento você fala do produto, em si, que resolve o problema que ele, o cliente, tem, e no terceiro momento você ensina esse seu leitor, esse seu prospect, sobre o que ele deve fazer para ter os serviços daquele banco que oferece aquele serviço que ele quer para o dinheiro que ele vai investir. Em propaganda isso funciona assim.

No jornalismo, é também a manchete, a chamada que decide, mas você tem uma outra técnica que não acontece na propaganda, que é o lead. O lead é uma síntese da matéria. O lead dá ao leitor aquilo que ele vai ter em todo o conjunto daquele texto enorme, enfatizando o que virá pela frente. O lead começa a colocá-lo no clima do que está acontecendo. Ele lidera a cabeça do leitor para dentro do texto.

E aí começamos a perceber como os recursos para criar envolvimento são importantes. Eu passei um bom tempo lendo o The New York Times, porque descobri uma coisa que eles fazem, que achei muito interessante. O primeiro parágrafo da matéria, ou seja, o lead, tem um estilo literário. Não é aquela coisa objetiva, seca, dados, dados, dados. Não. Ele diz sim o que, quem, como, onde, por que, que é clássico do jornalismo, mas ele faz isso de uma maneira a envolver, ele usa o estilo literário para que isso aconteça.

Na literatura mais ainda, até porque nela você tem espaço para usar esse tipo de recurso. E como é que você chega lá? Usando uma coisa muito simples. Usando o substantivo, usando a palavra exata, e não a palavra aproximada. E aí eu gostaria de pegar o início do livro do Jorge Amado, Terras do Sem Fim, que diz o seguinte: “O apito do navio era como um lamento que cortou o crepúsculo que cobria a cidade.”

Jorge Amado aparece aqui não como um escritor. É importante perceber isso. Ele é um artesão. Ele é aquele cara que está com uma pinça construindo um mosaico e ele pinça cada pedrinha para colocar no lugar certo. Ou seja, é a pedra certa, a pedra exata, no lugar exato. Não é qualquer pedra em qualquer lugar, porque senão ele não desenha o efeito que ele quer, ele não cria o envolvimento que ele quer. Ele é um artesão da palavra. Ele é alguém que faz arte com a palavra. E isso, é claro, requer sem dúvida nenhuma um repertório muito grande, para ele poder pensar “não é essa palavra aqui, é a vigésima terceira da minha lista de possibilidades”. A vigésima terceira significa que, antes dessa 23, eu tenho mais 22 possibilidades. Eu poderia usar qualquer uma delas, mas eu excluí todas, porque é só a vigésima terceira que me interessa.

Jorge Amado dá, portanto, um show. Ele mostra que escrever não é apenas juntar palavras. O Drummond diz que escrever é cortar palavras. Jorge Amado deve ter feito uma primeira versão desse texto e depois ele foi cortando palavras e substituindo por outras, e cortando no sentido de enxugar, para garantir que a síntese esteja realmente bem-feita.

Jorge Amado, nesse texto, dá uma aula daquilo que eu, quando escrevo, quando dou cursos, quando faço palestras, sempre insisto muito, que é a questão do uso do substantivo no texto. O uso do substantivo é usar a palavra exata, e não a palavra aproximada, e aí eu explico por que isso.

Porque quando você escreve, e essa consciência tem aflorado cada vez mais ultimamente, você não está apenas escrevendo. Você está fazendo uma prestação de serviço. Você está tentando contribuir com o seu leitor de alguma maneira. Eu vou te dar um exemplo. Estou falando aqui da Mooca, e eu conheço muito bem São Paulo, por exemplo. Não é esse o caso. E alguém me para na rua e pergunta: “Rubens, estou aqui na Mooca e eu queria chegar em Santo Amaro, como é que eu faço?”.

Eu não posso, de jeito nenhum, como eu já sei tudo de ir da Mooca até Santo Amaro, dizer: “olha, é simples, você entra aqui à esquerda, pega a direita e vai embora, que você sai em Santo Amaro”. Pelo amor de Deus. Isso seria de uma irresponsabilidade, porque ir da Mooca até Santo Amaro não é uma coisa simples desse jeito. Tem muito detalhe, tem muito entra, tem muito vire à direita, tem muito vire à esquerda. Tem muito aqui pode, aqui não pode, lá é contramão, lá tem trânsito impedido. Quer dizer, não é desse jeito.

Então, usar o substantivo significa prestar serviço. Dar uma contribuição. Não é apenas o exercício de falar alguma coisa para preencher espaço. Não. É prestar serviço. Eu preciso dar para essa pessoa uma informação completa, uma informação que permita que ele saia daqui da Mooca e chegue em segurança, sem se perder, sem sair em Santos primeiro, sem se atrapalhar, sem ter prejuízo nenhum, ou seja, preciso fazer com que ele chegue até Santo Amaro, que é onde ele pretende chegar.

Quando eu uso a palavra exata, eu sempre dou esse exemplo, e agora vou repetir. Se você disser: “no meu jardim há um vegetal”, isso está correto, inclusive gramaticalmente; não há nenhum problema. O problema é que não informa, não acrescenta, porque… o que é um vegetal? Um eucalipto é um vegetal, uma paineira é um vegetal, um pé de alface é um vegetal. Não acrescentou. Eu posso ter criado mais confusão ainda na cabeça do leitor.

Vamos melhorar a qualidade dessa informação? Vamos dizer, então: “no meu jardim há uma árvore”. Pronto. Eu eliminei o risco, a possibilidade de o meu leitor pensar em um pé de alface, porque pé de alface não é árvore. Ele pode até pensar em qualquer outra coisa, mas já não vai pensar em pé de alface. Eu melhorei a qualidade da informação.

Mas ainda não está bom. Vamos melhorar um pouco mais: “no meu jardim há uma palmeira”. Eu excluí tudo o que não seja palmeira. Dá para melhorar um pouco ainda? Dá: “no meu jardim há uma palmeira imperial”, “no meu jardim há uma palmeira imperial com 3,85 metros de altura”.

E aí eu lembro de uma pergunta feita pelo Drayton Bird no livro Bom Senso e Marketing Direto, que é sobre a questão da extensão do texto, que o pessoal fica brigando se o texto deve ser mais longo, mais curto, e ele encerra a questão, dizendo: “gente, isso tudo é uma bobagem. Sabe o que você tem que pensar? A questão é: de quanto barbante você precisa para amarrar o seu pacote?”. De quanta informação você precisa para atender à necessidade do seu leitor? Você deve dizer que há uma palmeira imperial e que ela está plantada do lado direito, e não sei mais o que e tal, no jardim, porque seu leitor precisa disso, às vezes para tomar uma decisão no ambiente corporativo, na vida pessoal, acadêmica? Diga que ela está plantada em determinado ângulo, alguma coisa assim.

E o Jorge Amado faz exatamente isso. Então, vamos à primeira palavra que ele usa, apito. Ele fala de um apito. A gente não é lá muito comportado no trânsito, mas você já notou como, no momento em que a gente houve a sirene da ambulância, fatalmente, automaticamente, a gente se desloca para dar espaço para a ambulância passar? O Jorge Amado poderia ter usado qualquer outra palavra, mas ele pensou “a palavra exata aqui é apito. O apito do trem tem um apelo que é maior do que a sirene da ambulância, então eu vou usar apito. Eu quero criar um ambiente”.

Usar o substantivo é usar a palavra exata para mergulhar o leitor em um clima, no ambiente, numa realidade em que ele se sinta lambuzado dessa realidade, banhado dessa realidade. É isso que precisa acontecer. Apito.

A próxima palavra, e olha que na mesma frase, fala de um lamento. Estou gravando hoje, numa sexta-feira santa, que é o dia do lamento. Lamento fala de dor. O apito fala de dor. O apito coloca o leitor em um clima de dor, de sofrimento, aponta para ele isso que ele está vivendo.

Em seguida, ele usa um verbo. Esse apito, essa dor, esse lamento, nada disso está parado. Existe um verbo, existe uma ação, ele corta. Pega uma faca muito bem afiada cortando, penetrando, rasgando, indo fundo numa realidade. É preciso desse verbo nesse momento para trazer o leitor para essa realidade. Precisa cortar, precisa fazer alguma coisa. Não tem como você ficar indiferente a uma mensagem dessa, porque você foi cortado pela mensagem do Jorge Amado.

Em que momento isso acontece? Não acontece de manhã, no nascer do sol, que é uma parte bonita do dia. Acontece no crepúsculo. Eu conheço muita gente que tem problemas sérios com essa hora do dia, em que estamos no lusco-fusco — ainda não é noite, já não é mais dia, e isso dá uma certa tristeza. Dá uma certa agonia, dá um mal-estar.

Isso tudo acontece em um momento ruim, que é o momento do crepúsculo. O crepúsculo fala daquilo que não é mais, porque já não é mais dia, e daquilo que ainda não é, porque a noite ainda não chegou. É um momento que é ruim para dirigir na estrada, porque, se você acende o farol do carro, ele não ajuda em nada. E se você não acende, você sente falta.

É o uso da palavra exata o tempo todo numa frase. E, por fim, é no momento em que o crepúsculo cobre. Você imagina o crepúsculo cobrindo, abarcando, não deixando nada de lado, não respeitando nada. O crepúsculo, aquele momento triste, aquele momento feio, desagradável, dolorido, sofrido, cortado pela sirene, pelo apito do navio. Esse crepúsculo cobrindo causa uma opressão; nesse momento de crepúsculo, você se sente oprimido.

Ou seja, se o Jorge Amado queria, ele conseguiu. Ele conseguiu, em uma frase, criar uma verdadeira tragédia, e não tem como o leitor fazer de conta que não foi atingido, que não foi cortado por essa frase do Jorge Amado, que, para nós, soa como o apito do navio no crepúsculo da nossa vida, nos diferentes momentos em que ela vai acontecendo. É isso.

 

NÃO PERCA, NA PRÓXIMA SEMANA

 

Paula Giannini - Escritora

 

 

Falando um pouco de linguagem, do formato da linguagem, o que você acha do hibridismo? O que você acha de uma linguagem híbrida, que mescle, por exemplo, como foi no meu caso já, contos com receitas? Você acha que esse experimentalismo é mais uma pirotecnia? O leitor quer boas histórias e isso para ele não importa, ou você acha que essa literalidade é um ganho em um texto? O que você acha?

 

 

 

Perguntas e respostas avançadas sobre Escrita Criativa – Episódio 5 fica hoje por aqui, mas, na próxima sexta-feira, retornaremos com o próximo episódio da série. Esperamos que você esteja gostando desse conteúdo.

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